Democracia
Definir democracia
Mesmo considerando que os cidadãos de inúmeros países do mundo vivem e cresceram em regimes políticos democráticos, dificilmente se encontrará uma definição unívoca de “democracia”. No seu célebre livro de 1957, o politólogo Giovanni Sartori contava mais de 160 definições. As definições acabam por depender da teoria que se adopta quanto ao fenómeno, e há de facto várias teorias. Além disso, o termo foi utilizado ao longo da História para designar uma miríade de diferentes regimes políticos. Por isso, e por estranho que possa parecer, ainda não há uma definição universalmente consolidada de “democracia”.
Contudo, há concordância sobre um conjunto de pressupostos para que haja democracia, entendendo com isso a democracia “moderna”, distinta da democracia “antiga”, ou seja, da que teve o seu desenvolvimento entre as polis gregas a partir do século V (Costant 1985). Tais pressupostos incluem a existência de um governo representativo e de uma legislatura representativa que resulte duma livre competição política entre propostas independentes (Dahl 1989). A identificação de traços incontroversos dos regimes democráticos é um dos métodos possíveis para discernir o que seja (uma) democracia, embora tal metodologia seja mais utilizada no âmbito da ciência política do que nas abordagens filosóficas. Estas, pelo contrário, visam identificar a qualidade moral ou o princípio ético que distingue as instituições democráticas.
São duas as razões fundamentais que levam à incerteza acerca da definição do regime político a que corresponde o termo “democracia”. A primeira é a antiguidade histórica do termo e a consequente variação semântica ao longo do tempo. A segunda é a diferença entre usos de uma definição disponível, mormente no respeitante ao objectivo e à utilidade que dela podem ser recortadas (Dahl 1956).
História e conceito de democracia
De um ponto de vista histórico, dois fenómenos distintos confluem no significado comummente dado ao termo “democracia”.
O primeiro, com origens no século XIX, salienta a redução da importância das diferenças sociais, ou de classe, no acesso às oportunidades individuais de crescimento e de mobilidade social, o que inclui coisas tão diferentes como as profissões, os estudos e a formação, etc. A partir do momento em que a participação política foi tida como um dos instrumentos mais eficientes para alcançar tal universalização no acesso às oportunidades, a “democracia” veio a incluir o enfraquecimento das barreiras sociais provocada pela maior participação na vida política.
O segundo representa um elemento de continuidade histórica, ligando a democracia moderna à antiga, porquanto enfatiza a origem da legitimidade do poder político, a saber, o demos, o povo.
Por isso, não são infrequentes as definições que englobam ambos os elementos. Um exemplo pode ser encontrado na definição de Holmes (1993), o qual tenta captar a complexidade histórica do termo definindo a democracia como um conjunto de instituições no qual quem detém o poder político responde a maiorias eleitorais no contexto de um sistema social liberto de diferenças sociais e de classe dotadas de um cunho jurídico. Outro exemplo é a proposta de Barrington Moore (1966), o qual, no seu notável contributo para uma apreciação das origens e da evolução da democracia no sentido moderno do termo, realça que essa é, de um ponto de vista histórico, uma “arma” nas mãos dos demais, sobretudo dos mais pobres, contra os poucos e mais ricos, e que são os primeiros a ter promovido, através das suas organizações, a participação política em massa.
Definições como as antecedentes interpretam a interligação do aspecto histórico e do aspecto “sistemático” da democracia. Definem democracia a partir da forma como ela se tem manifestado nos países ocidentais ao longo do século XX, enquanto regime no qual a luta política fundamental concerne as desigualdades sociais, ou seja, enquanto sistema no qual o objectivo principal da actividade política consiste na mediação do conflito social, do qual as desigualdades económicas são a principal expressão. Com isso, a igualdade política, ou seja, a igualdade no acesso aos direitos políticos, representa um “remédio” às desigualdades económicas e sociais. Trata-se de uma interpretação com origem nas observações de Tocqueville (1998) sobre a democracia na América do Norte.
Surge, assim, uma possível estratégia para abordar cientificamente o fenómeno da democracia, uma estratégia que consiste em analisar o que a história das lutas políticas e a evolução das instituições nos trouxe, na tentativa de captar as características fundamentais dos regimes democráticos actuais, explicando a sua configuração actual como o resultado de processos históricos. O risco implícito numa tal estratégia é o de privilegiar uma (ou algumas) experiência(s) histórica(s), negligenciando outras. Outro risco é o de desconsiderar ou menosprezar experiências novas ou diferentes, na medida em que não correspondem ao padrão histórico privilegiado.
Uma estratégia diferente consiste em conferir primazia ao uso possível de uma definição de “democracia”, assim como à sua utilidade. Nesse sentido, Dahl (1989) propõe que uma definição de “democracia” deva satisfazer três requisitos para poder ser considerada satisfatória.
Em primeiro lugar, uma definição tem de permitir a distinção entre “democracia” enquanto “tipo ideal” e enquanto “realidade”, ou seja, enquanto descrição de um regime político específico, geograficamente localizado e implementado através de um conjunto determinado de instituições. Isso implica que um conjunto de instituições possa ter uma maior ou menor correspondência ao tipo ideal sem deixar por isso de ser reconhecível enquanto democracia.
Em segundo lugar, uma definição satisfatória tem de incluir o núcleo fundamental dos significados históricos do termo sem por isso negar a possibilidade de inovações ou variações históricas.
Em terceiro lugar, uma definição tem de permitir uma distinção clara entre estados democráticos e estados não-democráticos.
É provável que, de um ponto de vista “filosófico”, o primeiro critério seja mais importante do que os restantes. A perspectiva filosófica distingue-se da perspectiva da ciência política ou da historiografia porquanto não tenta analisar ou definir os fenómenos que podemos observar na realidade dos nossos sistemas políticos, mas sim interrogar o seu valor “normativo”, perguntando se o que é também “merece” ser, enquanto “justo”. Nesse sentido, a distinção entre o tipo ideal e a realidade de um sistema político emerge como um elemento primordial. O “tipo ideal” ao qual Dahl se refere representa, no mesmo tempo, um ideal político, ou seja, um modelo normativo definindo o que “merece” ser chamado de democracia de forma a distingui-lo do que não merece tal designação. Um tal ideal representa, da mesma forma, uma “ideia reguladora” da democracia, ou seja, o objectivo que temos de ter em mente para dar a uma comunidade política o ordenamento que seja o melhor possível.
Daí a importância de uma “definição”, ou pelo menos de um modelo ou de uma representação suficientemente clara e funcional da democracia. Daí, também, a dificuldade da tarefa de se estabelecer uma definição satisfatória e pouco controversa de “democracia”, pois o ideal dependerá do conjunto de princípios éticos que forem considerados fundamentais.
Nas apropriada palavras de Bernard Williams (2005), as teorias que antepõem um ideal e daí procedem a uma análise da “realidade”, avaliando por conseguinte a “qualidade” de um sistema político democrático, são teorias que entendem as instituições políticas tão-só como aplicações, mais ou menos bem-sucedidas, de princípios morais. As teorias “implementadoras” correspondem à atitude teórica do “moralismo político”, segundo o qual a tarefa dos filósofos políticos consiste em determinar, por meios teóricos, o que é “politicamente objectivo”, por oposição ao “subjectivo”, isto é, ao resultado de meras “opiniões” acerca do que seja “justo”. E, nas suas versões mais “radicais”, a uma tal actividade teórica pertencerá também a tarefa de estabelecer que concepções morais podem ser incluídas na noção de cidadania de uma sociedade democrática (Nussbaum, 2001; veja-se também Miller, 2009).
A democracia no “moralismo político”
Um exemplo de teoria “implementadora” é a de Robert J. Goodin, o qual descreve a democracia como um regime político cujas instituições resultam da implementação de convicções morais difusas acerca do que seja a “justiça política” (“political fairness”), e que, por seu turno, encorajam os cidadãos a comportarem-se de forma consonante com as suas convicções morais (Goodin, 1992). Segundo Goodin, a democracia não dispensa princípios éticos, quer historicamente, para explicar por que os cidadãos optaram pelas instituições existentes, quer normativamente, para justificar tais instituições. Os cidadãos optaram por determinadas instituições porque essas correspondem ao sentido comum do que é “bom” para a comunidade política, e colocaram-nas no direito constitucional para enfatizar a sua proeminência ética (Goodin 1992: 103). Assim, o princípio “uma pessoa, um voto”, é a aplicação, na esfera política, do princípio geral da reciprocidade (Goodin 1992: 85).
Robert Dahl concebeu aquele que é provavelmente o mais conhecido modelo “implementador” da democracia. No seu Democracy and Its Critics (Dahl 1989: cap. 6 e 7), interpreta o núcleo das instituições democráticas como sendo aplicações do princípio de igualdade. Em particular, a igualdade política, ou seja, o acesso de cada cidadão ao exercício dos direitos políticos, justifica-se através de um princípio moral subjacente, a saber, o princípio da igual consideração dos interesses e dos valores daqueles que estão sujeitos às consequências duma decisão política, sendo “política” uma decisão que representa uma obrigação jurídica para os membros de uma colectividade. Desta forma, os próprios direitos políticos são consequência, ou seja, aplicação, de princípios morais. Um princípio adjacente, sem o qual o primeiro se não aplicaria, afirma que tais membros são supostamente dotados de autonomia individual num sentido moral, ou seja, têm a capacidade de avaliar o que corresponde aos seus interesses. Trata-se, neste caso, de um princípio “prudencial”, ou seja, de um princípio que, em geral, e na ausência de comportamentos que justifiquem a sua suspensão, tem de ser pressuposto (contrariamente a uma avaliação empírica de tal capacidade moral individual; exemplos de uma suspensão de tal princípio são os comportamentos criminosos que podem levar um juiz a considerar o sujeito como incapaz ou indigno de exercer os seus direitos políticos).
De tais princípios provém uma interpretação do que seja a representação política “correcta” e moralmente válida dos cidadãos por parte dos seus representantes: trata-se de uma representação na qual os interesses e os valores dos que estão sujeitos à lei são tidos na devida consideração, orientando e inspirando de forma imparcial a decisão dos que estão incumbidos da representação. Por outras palavras, as regras da escolha dos representantes e da sua actividade de representação têm de motivar os legisladores a empreenderem uma justa e honesta interpretação dos interesses e valores em jogo Por outro lado, uma decisão política é legítima (ou seja, merece ser obedecida) tão-só quando isso assim sucede.
Em princípio, uma decisão política moralmente “correta” poderia ser tomada tanto por representantes escolhidos pelos cidadãos como por uma classe de peritos que conheçam e saibam gerir os diferentes interesses e valores em jogo. Apenas na ausência de uma tal classe ou de um critério reconhecido que a possa identificar é que se justifica, segundo o modelo de Dahl, a escolha dos representantes por parte dos representados. Numa tal ausência reside, portanto, a justificação do princípio democrático do controlo dos representantes por parte dos representados, por exemplo através do procedimento eleitoral, baseado no direito individual à participação política. Outras características da democracia, tais como a igual oportunidade de participação e organização política, a igual importância e valor de cada voto individual, as iguais oportunidades de aceder e discutir as informações relevantes, a livre produção de tais informações e, em geral, a universalidade dos direitos que constituem a cidadania política, resultam destes princípios. Desta forma, Dahl identifica o núcleo da democracia na escolha dos representantes e justifica tal núcleo com base no princípio moral da igual consideração que merecem os interesses e valores de cada um, enquanto “moralmente igual”, ou seja, digno da mesma consideração do que os outros.
Uma característica das interpretações “filosóficas” da democracia, especialmente no âmbito das teorias da “implementação”, é a diversidade dos princípios morais utilizados para a sua justificação.
A título de exemplo, considere-se a teoria de Jeremy Waldron (1999), o qual interpreta os regimes democráticos como sendo aplicações do princípio do respeito mútuo entre os cidadãos. O princípio da decisão por maioria seria, desta forma, o procedimento mais adequado para atingir decisões colectivas na presença de desacordos acerca de interesses e valores. Tal procedimento é o melhor enquanto garante o respeito recíproco entre os cidadãos, quer porque não exige que alguém se submeta à convicção moral de outrem (cada um vota conforme a própria convicção), quer porque garante uma igualdade “procedural” das oportunidades de sucesso (todos os votos têm o mesmo peso). Na concepção de Waldron, os procedimentos formais (tais como a igualdade na ponderação dos votos, o acesso garantido às informações que orientam o voto, etc.) são o que define a natureza ética das instituições democráticas: uma vez garantidas algumas liberdades políticas, assim como o acesso ao exercício de determinados direitos políticos, fica também assegurada a correspondência da democracia aos princípios éticos fundamentais.
As teorias deliberativas
Raras são, todavia, as teorias filosóficas que valorizam os procedimentos formais da democracia em si. Mais frequentes são as teorias que questionam o papel de tais procedimentos do “jogo democrático” na produção de decisões eticamente válidas, visando analisar, ao invés, a “qualidade” da democracia, ou seja, a sua capacidade de produzir conclusões efectivamente válidas, no sentido de serem eticamente corretas ou verdadeiras. Isto porque as atitudes filosóficas dão importância à validade ética das decisões tomadas em democracia, conforme a orientação geral de que a democracia não é um valor em si, mas sim tem valor enquanto realiza princípios éticos. É, portanto, nessa medida que uma democracia será qualificada como tendo mais ou menos “qualidade”.
Entre as teorias que se interrogam sobre a qualidade dos procedimentos democráticos destacam-se as teorias da deliberação, as quais pretendem delimitar o campo eticamente válido das decisões tomadas através de procedimentos formais. Neste contexto, a garantia de direitos políticos formais é insuficiente para produzir a qualidade ética de uma democracia. É necessária ainda a obtenção de decisões eticamente “certas”.
Um exemplo de tal orientação teórica é a elaboração de James Bohrmann (1996). Tal como a maioria dos “deliberativistas”, Bohrmann visa dar solução ao que ele julga ser os défices da democracia liberal através de procedimentos deliberativos que aproximem o que é vinculativo para todos a uma decisão “certa”. Os procedimentos formais da democracia liberal, tais como o momento eleitoral e as sucessivas deliberações legislativas, não deixam espaço suficiente à produção de um consentimento genuíno, muito embora encorajem a “negociação” dos resultados entre os representantes. Um resultado moralmente “certo” não pode provir, todavia, de uma tal negociação entre pontos de vistas divergentes, mas tem de derivar do reconhecimento moral entre os detentores de tais interesses diferentes. Isso vale, pelo menos, quando as decisões tomadas afectam questões moralmente relevantes (o que Bohrmann chama a “constituição moral” da comunidade política) (1996: 90; veja-se também Gutmann e Thompson 1996: 21 e 43).
Os procedimentos deliberativos têm de encorajar os participantes a considerar o próprio ponto de vista particular de forma a reconhecer o valor moral dos pontos de vista divergentes, na medida em que o conflito resulta de convicções morais e não do simples interesse material e particular dos discordantes. Bohrmann liga a legitimidade do poder democrático ao sucesso de tal procedimento deliberativo: “Uma lei é legítima apenas se baseada na razão pública proveniente de um procedimento inclusivo e justo no qual todos os cidadãos podem participar, e no qual eles poderão cooperar livremente” (Bohrmann 1996: 184). Parecida é a formulação de Joshua Cohen, outro teórico proeminente das teorias deliberativas: decisões colectivamente vinculativas são legítimas se puderem “ser objecto de um consentimento livre entre iguais” que resulte do uso da sua razão (Cohen 1997: 73).
Parecidas são as conclusões às quais chega David Estlund, um dos nomes maiores das chamadas teorias “epistemológicas” da democracia, as quais têm muitas vezes origem na elaboração de John Stuart Mill (1981: cap. 3). Segundo Estlund, a nossa obrigação moral de acreditarmos na democracia e praticá-la advém do facto de os procedimentos democráticos terem a tendência de produzir resultados “verdadeiros”, ou seja, uma legislação com um conteúdo moral correcto. A democracia garante isto na medida em que os resultados da deliberação legislativa perpassam um processo de discussão pública, a qual promete conduzir os cidadãos a conclusões válidas se uma suficiente participação for garantida (Estlund 2008: Cap. 6; veja-se também Nelson, 2010; e Talisse 2005).
As concepções “políticas” da democracia
O principal problema que os teóricos da deliberação têm de enfrentar concerne à escassa possibilidade concreta de um procedimento deliberativo chegar a um resultado consensual. Um segundo problema diz respeito à dificuldade de identificar um padrão viável que nos diga quando o resultado da deliberação é, de facto, razoável.
Cohen reconhece a dificuldade quando afirma que nem em condições ideais poderemos estar seguros de que se chegará a um consentimento razoável. Por isso, uma deliberação terá de se concluir com um voto e uma regra qualquer de decisão por maioria (Cohen 1997: 75). Todavia, o objectivo das teorias deliberativas consiste em melhorar a qualidade da deliberação. Na visão de Cohen, o esforço colectivo de busca de razões persuasivas contribuirá muito mais para esse resultado do que uma qualquer simples agregação de preferências individuais que se não submetessem a uma troca pública de argumentos razoáveis.
Mais relevante para uma avaliação da atitude teórica “implementadora” pode ser o segundo problema, a saber, a dificuldade em identificar o que seja um resultado “razoável”. A esse propósito, vários autores salientam a origem histórica das concepções de razoabilidade, ou seja, o facto de os argumentos considerados aceitáveis e passíveis de discussão pública serem mais o resultado de experiências históricas do que de um conhecimento “filosófico”, o que quer dizer, passível de uma sistematização fora dos cânones do que a História e a experiência transmitiram aos cidadãos dos estados democráticos. Sendo produto da História e das experiências correntes, a própria razoabilidade dos argumentos será objecto de debate, ao invés de representar um critério exterior às práticas democráticas que os cidadãos, ou mesmo os filósofos, poderão utilizar para verificar a validade das conclusões dos procedimentos democráticos, seja legislativos, seja no debate público.
Nesta lógica, Benjamin Barber afirma não haver “respostas ‘certas’ ou ‘erradas’, posições ‘corretas’ ou ‘incorretas’, mas tão-só ‘visões alternativas’ competindo para serem publicamente aceites” (Barber 1984: 169). A partir do momento em que desconhecemos que decisão democrática teria sido tomada se não houvesse sido “distorcida” por factores que afastam os cidadãos e os seus representantes de um resultado “verdadeiro”, a partir do momento em que carecemos de uma teoria consolidada capaz de determinar qual seria tal resultado, não há outra opção senão confiarmos nos resultados “empíricos” dos procedimentos democráticos e contribuir para que tais procedimentos sejam maximamente eficazes quanto ao igual acesso às informações e aos direitos políticos que nos garantem uma real participação no jogo democrático (Shapiro 1996: 593; veja-se também Estlund 1993; e Christiano 2002).
Por isso, estes autores são cépticos em relação aos argumentos a favor de uma “democracia substancial”, ou seja, àqueles argumentos que consideram insuficiente a igualdade do “poder de voto” (“voting power”) dos cidadãos e que apostam, pelo contrário, em formas de alcançar uma legislação “justa” por meio de critérios que não os “correctos” procedimentos de formação da opinião pública e das decisões colectivamente vinculativas, próprios da democracia “formal” (Beitz, 1988).
Os autores que expressam um tal cepticismo perante a ideia de uma democracia “substancial” associam-se, normalmente, a uma visão “política” da democracia. Segundo esta perspectiva, as próprias concepções de justiça política são elementos passíveis de discussão nos procedimentos de debate público, e são, por isso, elas próprias sujeitas às regras do jogo democrático, ao invés de estarem na posição de determinar quando e por que tal jogo produz resultados “certos”.
Muitos autores cépticos perante as atitudes “implementadoras” invertem a relação entre legitimidade e procedimento formal: não são critérios substanciais a determinar se o resultado é legítimo, mas sim, ao contrário, o respeito pelos procedimentos determina o que tem de ser reconhecido como um resultado legítimo.
Tamanho pressuposto gera, frequentemente, uma visão “minimalista” dos objectivos da democracia. Um exemplo deste “minimalismo” é proposto por Shapiro (2005: 3), o qual define a democracia como um instrumento através do qual visamos minimizar as relações de dominação intrínsecas na ideia e na prática do poder político. Esta tese corresponde ao núcleo histórico da concepção moderna de democracia tal como se manifesta, por exemplo, em Rousseau (2001), baseada na noção de liberdade individual, a qual, nas condições da vida social, opera por meio do princípio segundo o qual quem estiver sujeito às leis tem também de se poder reconhecer como seu autor.
A diferença entre as visões “políticas” da democracia e outras não consiste na presença ou na ausência de um conteúdo “filosófico” ou normativo. Ambos os géneros de teoria procuram verificar de que forma as instituições da democracia se justificam à luz de critérios éticos. A diferença consiste, ao invés, no papel que os dois “estilos” de teorizar a democracia atribuem à teoria e à prática da democracia em relação ao problema da legitimidade. As visões “políticas” não atribuem à sabedoria filosófica o poder de determinar o que é legítimo na esfera política, limitam-se apenas a identificar os procedimentos que melhor realizam as liberdades que a História e a experiência consolidaram como património (supostamente) comum aos cidadãos de um país democrático. Neste último género de teorias, não está ausente uma justificação dos direitos políticos; ela é, sim, “contingente”, isto é, ligada à tradição de uma cultura política.
Com efeito, tanto as teorias “implementadoras” (próprias do “moralismo político”) como as teorias “políticas” da democracia tentam responder ao mesmo dilema, a saber, o de considerar como parte da cultura política democrática o facto de se não aceitar o poder político apenas por ser o poder exercido de facto, mas sim enquanto poder justificado. Por outras palavras, presume-se que os cidadãos de uma democracia se distinguem dos cidadãos de um regime não-democrático pela necessidade de razões para obedecerem ao poder, mormente razões que não a mera coacção. A resposta “moralista” ou “implementadora” à questão acerca das razões para se obedecer ao poder é: o poder merece ser obedecido enquanto (e se) é justificado com base em algo que não é em si político, mas sim que justifica o político e que, por isso, vem “antes” do político – da razão, do raciocínio.
Todavia, tal resposta não é a única possível. Considere-se, por exemplo, a seguinte afirmação de John Rawls:
O nosso exercício do poder político é plenamente apropriado só se o poder é exercido de acordo com uma constituição cujos fundamentos sejam tais que se possa razoavelmente supor que todos os cidadãos, enquanto livres e iguais, os aprovem à luz de princípios e ideias aceitáveis para a sua comum razão humana. Tal é o princípio liberal da legitimidade. (Rawls 1993: 137)
Esta afirmação não indicia uma ideia de razão, segundo a qual apenas o que é razoável e universal é legítimo, não se tratando, portanto, de um princípio “moralista”. Pelo contrário, ela indica o tipo de consentimento que deve ser buscado, assim como o modelo de colaboração a seguir, no sucedâneo de actos de argumentação na esfera pública. Em simultâneo, trata-se de uma “ideia reguladora” de tipo kantiano acerca do papel que a razão na vida política tem de ter para que as decisões colectivamente vinculativas possam alcançar uma plena legitimidade política: as nossas argumentações, tal como as instituições da comunidade política, têm de ser construídas de forma a encontrarem o consentimento dos cidadãos, assumindo que eles sejam pessoas razoáveis. Contrariamente às ideias “moralistas” que analisam as instituições políticas com base numa noção substantiva do que seja conforme à moral, a concepção “política” de Rawls (Rawls 1985) advém de uma consideração acerca das condições que as comunidades políticas enfrentam, nomeadamente, as condições do “pluralismo” dos valores e da multiplicidade dos objectivos que os cidadãos perseguem na sua vida individual. Em tais condições, as instituições democráticas têm de ser construídas de forma a obter o máximo apoio possível dos cidadãos (Rawls 1999a: 471).
A premissa filosófica subjacente é a de que as instituições têm de ser construídas de maneira a que o consenso participe na realização de um ideal de justiça política. As instituições não resultam de um compromisso entre as vontades e os objectivos dos cidadãos (o que seria um mero modus vivendi), mas sim de um entendimento acerca do que é razoável e do que pode ser reconhecido como preeminente em relação aos objectivos individuais dos cidadãos. Será esse o objecto de um consenso comum (“overlapping consensus”) (Rawls 1999b).
As teorias filosóficas da democracia são teorias da legitimidade política e explicam que características um regime democrático deve ter para ser legítimo. O que todas as concepções filosóficas da democracia têm em comum é a procura de um princípio ético que identifique o traço fundamental da democracia e que lhe forneça uma justificação filosófica: a democracia tem valor ético enquanto realiza um princípio ético relevante.
A preeminência da representação nas concepções filosóficas da democracia
Outras abordagens atentam ao problema da legitimidade sem terem de se focar na primazia da dimensão ética. Estas abordagens emergem no âmbito da “teoria política”, ou seja, daquele âmbito de estudos atinente, seja à especificidade dos mecanismos de decisão de um regime político, seja aos pormenores da construção das suas instituições.
A primeira diferença entre as abordagens filosóficas e as restantes consiste no grau de atenção dedicado aos aspectos da representação política. Com poucas excepções, as teorias filosóficas da democracia (assim como numerosas teorias provenientes da ciência política), salientam o aspecto da representação política, e consideram ser este o seu traço fundamental. A imagem da democracia resultante de tais elaborações aponta para uma “cadeia de autorizações” que justifica uma “cadeia de poderes” (Kelsen 1945: 118-119). O núcleo fundamental de uma tal dupla cadeia funciona da seguinte forma: o momento eleitoral autoriza um conjunto de representantes a tomar decisões colectivamente vinculativas por um período limitado, terminado o qual, o procedimento repete-se com o intuito de cumprir a prestação de contas devida pelos representantes aos eleitores. Regra geral (e com poucas excepções), as abordagens filosóficas enriquecem este quadro inquirindo acerca do que pode garantir a legitimidade de tal mecanismo no respeitante ao seu resultado ético (ou às suas premissas).
Alguns contributos no âmbito da problemática da legitimidade política, analisando mais de perto a evolução dos regimes democráticos, preferiram enfatizar as insuficiências do enfoque sobre a representação indicando a existência de uma pluralidade de instâncias de decisão que não correspondem a tal modelo (Olsen 2017). Em primeiro lugar, há o papel dos “órgãos não-eleitos”, como, por exemplo, os tribunais constitucionais. Em segundo lugar, existe a dimensão do poder administrativo. Em terceiro lugar, existe a dimensão do poder supranacional. Tais teorias apontam para mecanismos complexos de “prestação de contas”, dos quais o momento eleitoral é apenas um entre outros.
Adicionalmente, algumas teorias da legitimidade não perguntam acerca da raiz ética das instituições, limitando-se a indicar que traços são, de forma incontroversa, considerados parte dos regimes democráticos e como medir a sua consistência e efectividade (Migdal 2001; Gilley 2006; McLaughlin 2015). As teorias mais preocupadas com tais aspectos do poder em regimes democráticos pertencem normalmente ao âmbito da ciência política, e constituem, convencionalmente, a “teoria política” (por oposição à “filosofia política”).
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Outros artigos
Constituição; Contratualismo; Democracia Deliberativa; Estado; Estado de Direito; Legitimidade; Multidão; Parlamento; Pólis; Povo; Poder Constituinte; Regime Político; Representação
Como citar este artigo
De Angelis, G. “Democracia”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2020), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/democracia>.
DOI: http://doi.org/10.34619/p182-pt70
Publicado em: 22 de Janeiro de 2020
FCSH, Universidade Nova de Lisboa
<gabriele.deangelis@fcsh.unl.pt>