democracia deliberativa
A ideia de que a discussão livre entre os cidadãos deve desempenhar um papel central nos mecanismos de tomada de decisões tem uma longa tradição, desde a democracia ateniense clássica, onde um dos princípios fundamentais era o da isegoria – o direito de todos os cidadãos expressarem, de forma livre e igual, as suas opiniões na assembleia – até às reflexões de pensadores como John Stuart Mill, para quem a liberdade de expressão e o debate aberto são instrumentos essenciais para promover a liberdade e desenvolvimento individuais, além da utilidade social, ou, mais recentemente, de Hannah Arendt, que associava indissoluvelmente a política à interação dialógica livre sobre temas de interesse comum aos cidadãos. Na teoria política contemporânea, no entanto, esta ideia foi objecto dum significativo processo de sistematização e aprofundamento, tornando-se o cerne de uma concepção de democracia – a assim chamada teoria da “democracia deliberativa” – que se tornou muito influente nas últimas décadas.
Atualmente, em teoria e filosofia políticas, por “democracia deliberativa” entende-se uma perspectiva específica sobre a democracia, que começou a desenvolver-se nas décadas de 80 e 90 do século XX, baseada na ideia de que a democracia deve ir além duma concepção minimalista – que a vê como um simples mecanismo de agregação das preferências individuais através de mecanismos como eleições e negociação parlamentar -, conferindo um papel central à deliberação dos cidadãos e à busca por um consenso fundamentado. O princípio normativo fundamental subjacente a essa compreensão da democracia é a ideia de que essa forma de governo não deve basear-se apenas em considerações instrumentais – conciliar a pluralidade de interesses dos cidadãos de maneira pacífica -, mas principalmente na legitimidade das suas leis e instituições, uma legitimidade que é obtida desde que resulte de um processo de justificação racional realizado por meio de um debate público entre cidadãos livres e iguais. Nesse sentido, a democracia deliberativa deve ser associada a dois valores fundamentais adicionais: a ideia de que a política também requer participação e a ideia de que um regime político justo requer conciliar o respeito pela autonomia dos seus cidadãos e pelo princípio do autogoverno com a procura do bem comum através de políticas racionais, ou seja, fundamentadas em bons argumentos (Benhabib 1994: 30).
Partindo destes pressupostos normativos, uma parte significativa do debate em torno da democracia deliberativa centrou-se na definição de quais seriam as melhores condições para garantir que a deliberação seja efetiva e possa produzir justificações aceitáveis para todas as partes envolvidas. Nas secções seguintes, analisaremos os principais pontos teóricos dessa concepção de democracia e como ela se desenvolveu ao longo do tempo, também em resposta às diversas críticas que recebeu. A exposição que se segue será articulada em torno dos grandes temas que têm sido debatidos no âmbito da teoria da democracia deliberativa. Trata-se de uma reconstrução destes debates que passa pela sempre contestável selecção de alguns teóricos tidos como pontos de referência ou como paradigmáticos de determinadas inflexões na literatura em causa e que são aqui objecto de maior desenvolvimento. Desta forma, tentámos encontrar um ponto, que esperamos seja de equilíbrio, entre a impossível exaustividade da discussão e o propósito de tratar cada autor da forma mais justa possível, atendendo à complexidade da sua argumentação. Por outro lado, como é evidente, qualquer operação de selecção implica escolhas (difíceis), que passam pela exclusão de alguns teóricos relevantes que outros poderiam legitimamente entender merecer ser incluídos nesta exposição.
Os fundamentos normativos da democracia deliberativa: Habermas e Rawls
É comum remontar as origens teóricas e normativas da democracia deliberativa a dois grandes filósofos contemporâneos, Jürgen Habermas e John Rawls. No primeiro caso, trata-se de uma relação direta entre a sua produção teórica e o paradigma da democracia deliberativa, pois Habermas não apenas é uma fonte de inspiração, mas também um dos teóricos que mais contribuíram para o desenvolvimento dessa perspectiva. No entanto, no caso de Rawls, a relação é mais indireta. O filósofo americano, de facto, não tratou nos seus escritos da deliberação pública enquanto tal, estando mais interessado em teorizar o papel que a “razão pública” – ou seja, a razão que os “cidadãos enquanto tais” têm de adotar (1996: 213) – deveria assumir numa sociedade justa. No entanto, a noção rawlsiana de razão pública (1996 e 1997) – nos termos da qual, num contexto de inevitável pluralismo (razoável) de concepções morais e religiosas, nenhuma norma poderá ser legitimamente imposta se não puder ser justificada com base em ideias ou argumentos largamente partilhados e, em princípio, aceitáveis para todos os cidadãos – influenciou muitos teóricos que viriam a construir teorias da democracia fundadas na deliberação pública.
Em geral, podemos dizer que Rawls desenvolveu a noção de “razão pública” para responder ao desafio do pluralismo nas sociedades liberais. Um tal desafio, para Rawls, implica que a legitimidade do poder político não seja meramente o resultado de um modus vivendi ou de um compromisso pragmático entre interesses e concepções do bem incompatíveis. Pelo contrário, Rawls acredita que em sociedades liberais caracterizadas pelo pluralismo é fundamental, para assegurar a legitimidade do poder político, que este seja exercido nos termos de um quadro constitucional a cujos princípios básicos “todos os cidadãos enquanto livres e iguais possam expectavelmente dar a sua adesão à luz dos princípios e ideais aceitáveis segundo a sua razão comum humana” (Rawls 1996: 137, cf. 217). Para tal, as decisões políticas devem estar fundadas em razões que cumpram com critérios argumentativos aceites por todos os cidadãos razoáveis: razões baseadas em valores e princípios políticos partilhados, em provas científicas e argumentos lógicos, e que, além disso, sejam independentes do que ele chama “doutrinas compreensivas” – um conjunto de crenças sobre os valores morais, metafísicos, ou religiosos, últimos que formam uma visão geral e coerente (Rawls 1996: 13) – pois isso limitaria a possibilidade da sua aceitação pela generalidade dos cidadãos.[1] Rawls considera que utilizar a razão pública na hora de discutir e decidir sobre questões de justiça básica e princípios constitucionais essenciais representa para os cidadãos em geral (e, portanto, não apenas para os funcionários públicos[2]) um dever moral, que ele chama de “duty of civility” (1996: 217), um dever que impõe também “uma disponibilidade para ouvir os outros e uma capacidade para decidir de forma equitativa quando é que se justifica fazer concessões às suas perspectivas” (1996: 217). Por outro lado, o dever de civilidade não se aplica relativamente à “background culture”, ou seja, no âmbito da discussão pública informal da sociedade civil e quando não são tratadas questões de justiça básica e princípios constitucionais essenciais.
Diferentemente de Rawls, que, como mencionado anteriormente, não se dedicou a explorar de forma detalhada a deliberação intersubjetiva enquanto tal, Habermas desenvolveu uma das formulações mais ambiciosas e sistemáticas da teoria da democracia deliberativa. Com efeito, Habermas dedicou a este tema uma série de escritos a partir do final dos anos 80 – especialmente na sua obra Faktizität und Geltung (de 1992, posteriormente traduzida para o inglês em 1996) – que foram muito influentes, mas que suscitaram também várias críticas (Habermas, 1988, 1996, 1998a, 1998b, etc.). A teoria da democracia de Habermas baseia-se em duas outras importantes teorizações desenvolvidas por este filósofo nos anos anteriores: a primeira sobre a esfera pública (1989) e a outra sobre o que Habermas chama de “ação comunicativa” (1984; 1987) e “ética do discurso” (1990; 1998b: cap. 1). No que diz respeito a esta última, pode-se dizer que a teoria da democracia deliberativa deriva da transposição para a esfera política das suas reflexões sobre a importância ética e em termos de coesão da comunidade, do que ele chama de “acção comunicativa”: uma razão não meramente instrumental, funcional, mas “discursiva”, ou seja, intersubjetiva e voltada para a compreensão mútua. Se, no campo moral, Habermas defende a ideia de que a moralidade deve ser construída de forma dialógica, através de um processo de argumentação racional e mútua que faça emergir a força do melhor argumento e que, portanto, deverá suscitar idealmente o consenso de todos os indivíduos “razoáveis” (eis o núcleo da “ética do discurso”); no domínio político, Habermas acrescenta a isso a necessidade da lei. É a lei, de facto, que complementa o poder persuasivo do melhor argumento com o poder coercitivo do estado de maneira a garantir o cumprimento das normas por todos os cidadãos. No entanto, é crucial para Habermas que a lei não se ampare apenas na ameaça do poder coercitivo estatal. Ela deve ser vista pelos cidadãos como legítima. E, para que isso aconteça, Habermas argumenta que é necessário que os cidadãos compreendam as leis como o resultado de um processo deliberativo de argumentação e justificação, democrático, ou seja, no qual participem todos os que são afetados por elas, e racional, realizado sob uma série de condições que se aproximem o mais possível das condições ideais que garantiriam essas características de democraticidade e racionalidade.
Como veremos mais adiante, os teóricos da democracia deliberativa desenvolveram diversas propostas em relação a essas condições, ou standards discursivos. A proposta de Habermas apoia-se numa análise das condições de possibilidade da comunicação humana (o que ele chama de “pragmática universal”) que identifica os pressupostos implícitos – o que ele chama de “pressupostos pragmáticos” – de que as pessoas partem quando participam e tentam argumentar e justificar as suas posições. De maneira resumida, as pessoas assumiriam que, no debate público, seriam consideradas todas as informações e as razões relevantes relativas ao assunto em discussão, garantindo assim o carácter racional da deliberação; todos os indivíduos afetados teriam o direito de participar no debate, em condições de igualdade e livres de coação; e que a discussão seria feita num espírito sincero de busca pelo consenso, de modo a evitar que o discurso seja animado por interesses parciais e fins instrumentais (Habermas 1990; 1998b: cap. 1). Habermas utilizou esta análise linguística, em primeiro lugar, para a sua teoria ética e, sucessivamente, no âmbito da teoria democrática. Neste âmbito, Habermas defende que a legitimidade das normas e instituições democráticas é determinada pela proximidade dos processos políticos concretos a estes pressupostos ideais (Habermas 1998a: 107-110). Esta última posição gerou várias críticas, na medida em que condiciona a legitimidade democrática a uma série de condições ideais, e, portanto, inatingíveis na prática.[3]
A teoria da democracia habermaseana pode, portanto, ser entendida como uma teoria discursiva da democracia, na qual o princípio da soberania popular é interpretado numa perspectiva dialógica, intersubjetiva, uma vez que o processo deliberativo – regulado por condições ideais ou contrafactuais e institucionalizado por meio de uma série de procedimentos legais – torna-se no mecanismo através do qual o princípio da vontade popular se materializa, adquirindo a forma de um “poder comunicativo” (Habermas 1998a: 371). A teoria de Habermas pode também ser classificada como uma teoria procedimental da democracia, mas na qual os procedimentos são essencialmente pensados com o fim de garantir as condições necessárias para que o processo deliberativo possa garantir a legitimidade democrática.
Além destes aspetos mais normativos, um elemento interessante da teoria democrática de Habermas é a maneira como nesta se entende a relação entre a esfera da sociedade civil e a esfera estatal, as suas instituições, principalmente as assembleias legislativas. Com efeito, de acordo com Habermas, o poder comunicativo não é limitado à primeira destas duas esferas. Pelo contrário, Habermas considera que este poder tem origem na sociedade civil, sendo posteriormente transferido para a esfera institucional, onde se materializa assumindo a forma de normas positivas. Nessa transição da esfera pública da sociedade para a do estado, as opiniões, que se formam de maneira difusa na primeira, são filtradas dos seus elementos mais irracionais e moralmente problemáticos, adquirindo uma forma universalmente válida, ou seja, assumindo a forma de argumentos normativos que todas as partes interessadas podem em princípio aceitar. Trata-se, portanto, de uma teoria que reconhece à esfera pública da sociedade civil um grande poder criativo e democrático: o de identificar e interpretar os problemas da comunidade que devem tornar-se objeto da decisão democrática da comunidade (Habermas 1998a: 298, 354-358, 360-365, 380–83, 442).
Em suma, podemos concluir que o núcleo da teoria da democracia de Habermas consiste na ideia de que é a deliberação democrática e racional que permite preservar e promover a autonomia, tanto a nível individual, quanto a nível coletivo. Ou, por outras palavras, que é o processo deliberativo, institucionalizado de maneira a garantir que ocorra em condições justas, que permite resolver o dilema rousseauneano de como fazer com que os cidadãos possam compreender-se simultaneamente como autores e súbditos da lei (Habermas 1998a: 120).
A consolidação da democracia deliberativa: o debate sobre os critérios e a função da deliberação
Como acima explicado, Habermas e Rawls foram dois filósofos extremamente influentes na formação do contexto intelectual a partir do qual se desenvolveria e consolidaria a posterior literatura da democracia deliberativa. Mas convém notar que há contribuições para esta literatura que de algum modo antecedem e se desenvolvem de modo francamente independente em relação a estes dois vultos maiores.
Em 1985, o teórico francês Bernard Manin, por exemplo, escreveu um artigo seminal para a teoria da democracia deliberativa (traduzido entretanto para inglês em 1987). Neste, procura demonstrar a relevância da deliberação para a legitimação das decisões tomadas com base no princípio da maioria, oferecendo uma forma de compatibilizar o princípio da liberdade individual, típico do liberalismo, com a necessidade de tomar decisões colectivas, descartando para tal efeito o desiderato da unanimidade que se revelaria impraticável
Um pressuposto central do argumento de Manin é a ideia – que ele contrapõe às posições de teóricos como Rousseau, ou o primeiro Rawls (o da Teoria da Justiça) – de que os cidadãos, quando entram no espaço público para decidir sobre questões de interesse geral, já têm as suas preferências completamente formadas (1987: 341-351). Partindo desse ponto de vista, Manin descreve a deliberação pública como um processo de aprendizagem voltado para a tomada de decisões colectivas, através do qual os cidadãos melhoram, mudam, ou formam mesmo originalmente as suas próprias posições e chegam a decisões sobre a multiplicidade de questões acerca das quais uma comunidade política deve decidir. Por isso, Manin conclui que é “necessário alterar radicalmente a perspetiva comum às teorias liberais e ao pensamento democrático: a fonte da legitimidade não é a vontade pré-determinada dos indivíduos, mas sim o processo da sua formação, isto é, a própria deliberação” (1987: 352-353). Ou seja, a legitimidade democrática das decisões políticas não deriva do facto de elas refletirem a vontade de todos os cidadãos (como tentou mostrar, sem sucesso, Rousseau). Pelo contrário, as decisões são democráticas se resultarem de um processo deliberativo, aberto a todos os cidadãos, por meio do qual eles possam formar livremente as suas próprias opiniões e chegar às suas próprias resoluções. Seguindo o ponto de vista de J. S. Mill, Manin destaca a relação fundamental que existe entre o caráter coletivo e plural desse confronto de ideias e a liberdade individual. Apenas o confronto entre uma multiplicidade de pontos de vista contrastantes, de facto, permite a quem participa na deliberação formar uma opinião e chegar a uma decisão de maneira informada e racional, ou seja, por meio de um processo que não é imposto.
Ao mesmo tempo, Manin adverte-nos quanto às reais possibilidades de alcançar um consenso generalizado. Ao contrário de algumas posições de caráter marcadamente racionalista expressas por vários teóricos da democracia deliberativa nos anos seguintes, Manin observa que a deliberação democrática é um processo, sim, de argumentação racional, no qual se procura o melhor argumento, mas é também um processo que pela sua própria natureza não admite argumentos absolutos, necessários, irrefutáveis (1987: 353-355). Manin entende a deliberação pública, em termos mais similares, por exemplo, aos de uma autora como Hannah Arendt ou à tradição retórica do que a filósofos racionalistas como Habermas ou Rawls. Para Manin, de facto, a deliberação pública é um processo argumentativo baseado em valores geralmente partilhados por uma comunidade; valores, portanto, relativos e não absolutos. É um processo que, consequentemente, só pode produzir consensos parciais, incompletos. O objetivo de um consenso universal – objetivo que vários autores da democracia deliberativa incorporarão nas suas teorias democráticas, embora como um ideal regulador – não se adequa para Manin à natureza da deliberação política.
No entanto, este autor sublinha simultaneamente o facto de o objectivo da generalidade, esse sim, ser intrínseco à deliberação. Para obter o máximo consenso possível, as posições que se confrontam na deliberação pública devem mostrar que têm em consideração os interesses da generalidade, em vez de ser animadas só por motivos e interesses parciais. E as posições que vencem essa competição discursiva não o fazem porque apresentaram argumentos irrefutáveis, absolutos, mas sim porque foram capazes de convencer razoavelmente o maior número de pessoas.
Por último, uma democracia centrada na deliberação também permite justificar o papel fundamental da minoria, na medida que entende o processo de tomada de decisões colectivas como um processo argumentativo no qual todas as partes interessadas têm direito a participar, incluindo aquelas cujas posições resultarão minoritárias (1987: 359-361) no final do processo. Manin conclui, portanto, que a deliberação democrática permite justificar o principal mecanismo pelo qual as decisões são tomadas numa democracia – o princípio da maioria – de maneira mais convincente do que a mera necessidade prática (como defendido habitualmente por parte da tradição democrática). Nos termos desta perspectiva, a decisão pela maioria é legítima porque resulta de um livre intercâmbio de opiniões que ocorreu, se não através da participação direta de todos os cidadãos (considerando a natureza representativa das democracias atuais), pelo menos em frente do auditório universal do todos os cidadãos.
Outro artigo igualmente seminal para a teoria da democracia deliberativa seria publicado em 1989 por Joshua Cohen. Remetendo a origem da expressão “democracia deliberativa” para um anterior artigo de Sunstein (1985), Cohen vem apresentar o ideal do processo deliberativo como um ideal regulador.
Nos termos do ideal da democracia deliberativa, segundo Cohen, os membros de uma associação democrática consideram o processo deliberativo como a fonte de legitimidade dos resultados: estes são legítimos se forem, e na medida em que o sejam de facto, patentemente o resultado da deliberação. Quando assim não seja, isto é, quando os resultados emirjam, a contrario, do nu confronto entre preferências pré-deliberativas e opostas, do jogo de forças entre vontades maioritárias e minoritárias, e da negociação cínica (“bargaining”) em função de interesses privados e não do oferecimento de razões tendo em vista uma concepção do bem comum, estes resultados carecerão de legitimidade. Da legitimidade deliberativa das decisões resultaria também a justificação e a motivação suficiente dos cidadãos, sobretudo dos “derrotados”, para obedecer, para adequar o seu comportamento à ordem jurídica.
Numa das passagens mais citadas do artigo, Joshua Cohen afirma que os resultados de um processo decisório seriam “democraticamente legítimos se, e apenas se, esses resultados pudessem ter sido o objecto de um acordo livre e justificado entre iguais” [4] (Cohen 1989a: 22).
A legitimidade democrática da deliberação, portanto, dependeria de determinados critérios exigentes. Em primeiro lugar, a deliberação deveria ser livre, isto é, os interlocutores na discussão deveriam estar imunes face às ameaças coercitivas e outras formas de poder; por outro, deveriam recusar-se, do seu lado, e por princípio, a recorrer às mesmas.
Em segundo lugar, a deliberação deveria ser justificada, na medida em que idealmente os membros deveriam apresentar argumentos em favor das suas propostas e em oposição às que lhes sejam antagónicas. Não bastaria como razão a favor de uma proposta o simples facto de ela constituir uma preferência do próprio.
Não apenas isto, mas, em terceiro lugar, e como a deliberação deve ser dirigida a um consenso “racionalmente motivado”, os agentes deliberantes deveriam procurar encontrar os argumentos que sejam – ou pudessem ser – persuasivos para todos os envolvidos, sendo certo que, admite Cohen, esse esforço, ainda assim, mesmo sob circunstâncias ideais, pode ser infrutífero, pois pode ser muito difícil encontrar argumentos realmente consensuais. Nesse caso, naturalmente, terá de se chegar a uma conclusão por meio da votação (Cohen 1989a: 22-23).
Finalmente, a deliberação legítima deveria decorrer sob condições de igualdade substantiva entre os interlocutores, de modo que “a distribuição existente de poder e recursos não determine a sua capacidade (“chances”) de contribuir para a deliberação” (Cohen 1989a: 23). Ao reconhecer que os pré-requisitos para que a deliberação possa ser genuinamente livre e igual são amplos e profundos, Cohen relembra que esse reconhecimento tem implicações constitucionais substantivas e determinaria que determinados tópicos ou soluções constitucionais deveriam ser removidas da agenda política como indiscutíveis ou intocáveis, precisamente porque corresponderiam ao “pano de fundo” necessário à preservação contínua da deliberação pública (1989a: 32). Neste artigo, de cariz mais abstrato, Cohen constata, por um lado, que as desigualdades materiais são uma importante fonte de desigualdades políticas e, por outro, insiste na necessidade de tornar o financiamento partidário público – já que os partidos funcionariam como “arenas” para a livre deliberação entre iguais e, nesse sentido, constituiriam um “bem público” (1989a: 31).
Tendo aqui sublinhado, de forma clara, a existência e relevância de pré-condições económicas e materiais da democracia deliberativa – recusando, assim, refugiar-se num vago igualitarismo liberal como outros autores – Cohen (1989b), num outro artigo saído à estampa no mesmo ano, vem defender a este propósito a necessidade de introdução de uma forma de socialismo liberal e de mercado, assente na dispersão do poder económico e na universalidade da forma cooperativa das empresas. Um dos principais argumentos aventados por Cohen para este efeito é o de que o âmbito da deliberação democrática ficaria inevitavelmente muito restringido pelos constrangimentos estruturais do capital (1989b: 42-43), isto é, que, mantendo-se o capital em mãos privadas, seria impossível à comunidade política tomar um conjunto de decisões no âmbito económico, relativas ao investimento e ao combate às desigualdades, sob pena de se deparar com uma inevitável e insuperável resistência pelos detentores do capital. Embora seja admissível nalguns casos remover, até por determinação constitucional, certos tópicos da agenda política, Cohen não veria que tal fosse justificável no caso concreto da propriedade sobre os meios de produção, podendo até argumentar-se que, de outro modo, se esvaziaria a política democrática da sua “substância” e interesse (1989b: 45).
Sete anos volvidos, em 1996, Amy Gutman e Dennis Thompson publicariam um livro – largamente discutido e influente – intitulado Democracy and Disagreement. Neste procuravam aprofundar a discussão mergulhando nas características normativas ideais da própria deliberação. As teorias da democracia tradicionais pouco tinham tido a dizer sobre como deveriam ser conduzidas as discussões e resolvidos os diferendos morais num sistema político democrático. Por outro lado, o sistema político americano, na prática quotidiana, demonstrava igual défice deliberativo. Para resolver este segundo problema, o da prática, seria necessário abordar de forma profunda também o défice de tratamento teórico do problema da deliberação. As recomendações normativas de Gutmann e Thompson sobre a deliberação seriam aplicáveis a todo o tipo de instâncias que permeiam o processo democrático: não apenas o supremo tribunal, as instâncias legislativas e governamentais em geral (a nível central ou local), mas as organizações da sociedade civil (1996: 12). A questão que se punha é que, sendo as decisões políticas impostas colectivamente a todos, inclusive aos que delas discordassem, elas deveriam ser justificáveis e isso significaria oferecer razões e estar disponível para ouvir argumentos contrários. Mas em que termos?
Neste livro, os autores buscam oferecer e ilustrar três princípios ou padrões normativos que constituem as “condições da deliberação”. Estes princípios são os seguintes a) princípio da reciprocidade, b) princípio da publicidade, e c) princípio da responsabilidade – a “accountability” (também traduzível por prestação de contas). A estes três princípios, referentes à regulação da deliberação propriamente dita, somam-se outros três princípios que seriam “componentes do conteúdo da deliberação”: a) a liberdade (ou liberdades) básica(s), b) as “oportunidades básicas”, e c) as “oportunidades equitativas”. Ainda assim, os autores recusam que esta distinção entre os dois tipos de princípios seja um mero decalque da distinção, tipicamente formulada no âmbito da teoria democrática, entre processo e substância. Na verdade, procuram, de modo algo rebuscado e nem sempre persuasivo, abolir a própria distinção processo/substância.
Atendendo à sua maior centralidade na economia do argumento do livro e do teor geral da literatura deliberativista, dar-se-á conta aqui apenas dos três princípios relativos às condições da deliberação.
O princípio central da reciprocidade sugere que, ao fazer uma proposta, as partes envolvidas na deliberação devem ter (e mostrar ter) a capacidade para procurar termos equitativos de cooperação social com os seus interlocutores “similarmente motivados” – ou seja, interlocutores que igualmente se mostrem disponíveis para reciprocar, e que o queiram fazer por razões intrínsecas (isto é, pelo facto de desejarem – ou verem valor intrínseco em – justificar-se perante outrem) e não por razões meramente instrumentais ou prudenciais (1996: 54-55). Isso pressupõe já que as pessoas, ainda que discordando, se vêem como livres e iguais – com igual valor e dignidade moral – e que mostram um respeito mútuo entre elas, ou seja, que exibem uma atitude de abertura em relação às posições com que podem discordar (1996: 79-91) Isso implicaria que, ao defender uma determinada proposta, os cidadãos deveriam oferecer aos seus (potenciais) adversários argumentos que pudessem ser aceites ou entendidos como aceitáveis por estes, ainda que os que os ouvem possam não aceitar na prática que estas razões justifiquem de facto as conclusões pretendidas (1996: 53).
O princípio da publicidade sustenta que as razões oferecidas para justificar propostas e actos políticos devem ser públicas e que a informação necessária para aferir da validade das mesmas seja também pública ou publicamente acessível. O segredo, assim, seria incompatível com os seguintes desideratos da democracia deliberativa: o do consentimento genuíno dos cidadãos; o do alargar das perspectivas dos interlocutores, dando a conhecer as razões e perspectivas de todos; o de permitir que, desta forma, pudessem ocorrer verdadeiras correcções e mudanças de opinião; o da clarificação da real origem das discordâncias morais.
O princípio da responsabilidade ou da prestação de contas, deixado mais vago pelos autores, mantém simplesmente que “num fórum deliberativo, cada um é responsável perante todos”, no sentido em que todos estão obrigados a justificar-se perante os outros pelas decisões e efeitos delas sobre os demais, embora, naturalmente, os mecanismos representativos, ao instituírem uma certa distância e divisão do trabalho intelectual entre representantes e representados, levantem alguns desafios específicos.
Igualmente em 1996, sai à estampa o livro de Thomas Christiano The Rule of the Many. Este constitui uma defesa de uma concepção de democracia enquanto igualdade no processo político que, embora crítica de alguma literatura deliberativista e dos seus pressupostos, pode ser inscrita em grande medida no âmbito desta mesma tradição[5]. Ao contrário de Gutman e Thompson, Christiano circunscreve o ideal democrático à igualdade dos cidadãos no processo de decisão política e distingue-o claramente do problema mais amplo da justiça e da igualdade socio-económica, os quais expressam uma preocupação com a substância intrínseca dos resultados. A democracia não é equivalente à maximização da utilidade ou das preferências dos cidadãos, à igualdade de bem-estar (56) ou sequer à igualdade económica (Christiano 1996: 78-83), ainda que uma excessiva desigualdade económica tenha impactos severos sobre a igualdade política (1996: 143 e ss). A democracia prende-se com um tipo de igualdade processual, uma igualdade no processo de decisão. A deliberação não é valiosa em si mesma, mas instrumentalmente, como meio ou condição para a adequada realização da igualdade política. Sucede que, contemporaneamente, os obstáculos à igualdade política, segundo Christiano, dizem respeito, primordialmente, a deficiências no processo deliberativo, nomeadamente as desigualdades cognitivas e informacionais entre os cidadãos (e entre estes e os seus representantes) e as desigualdades no processo de determinação da agenda pública. Dando como bons os argumentos da escola elitista sobre a (relativa) inevitabilidade das desigualdades intelectuais dos cidadãos e a noção de que as pessoas têm incentivos estruturais para serem “racionalmente ignorantes”, o desafio, segundo Christiano, torna-se o de como compatibilizar estas limitações dos cidadãos com o ideal da igualdade política.
Christiano começa por distinguir entre a definição dos fins éticos e políticos últimos que a comunidade política deverá prosseguir, que podem e devem ser determinados pelos cidadãos (e que seriam cognitivamente menos exigentes), e a definição dos meios mais apropriados para atingir esses fins, a qual deveria ser deixada aos especialistas e aos representantes políticos atendendo à complexidade técnica destes problemas. Se, por um lado, Christiano parece aqui conceder terreno ao elitismo, aceitando a necessidade de uma divisão do trabalho intelectual e, consequentemente, algum grau de desigualdade política, , por outro lado, vem apresentar propostas concretas, normativamente mais ousadas e igualitárias (para a realidade norte-americana, isto é) de modo a garantir a igualdade (política) deliberativa. Assim, defende sistemas eleitorais proporcionais e a primazia dos partidos, na medida em que estes, que fornecem pacotes claros e articulados de fins (simplificando o processo cognitivo para os grupos de cidadãos e amenizando os típicos problemas de “controlo” ou “agency”), são sob estes sistemas tratados de modo igualitário, contribuindo para uma discussão centrada em ideias – razões e argumentos em vez de personalidades – e inclusiva dos interesses e perspectivas de todos (1996: 259-261). Da mesma forma, insiste na necessidade de garantir a “autonomia legislativa”, ou seja, a impermeabilização dos partidos face às pressões extra-eleitorais, defendendo, para tanto, a estrita regulação do financiamento das campanhas eleitorais, ou, no limite, a proibição de todo o financiamento privado (1996: 222). Finalmente, defende a (re)distribuição pública e democrática de recursos públicos (subsídios) pelas associações secundárias (partidos, organizações da sociedade civil, presumivelmente sindicatos, associações de direitos civis, etc.).
Aplicações práticas e desenvolvimentos posteriores: As “pesquisas de opinião deliberativa” e o “dia da deliberação”
À discussão normativa e abstracta sobre o valor e características da democracia deliberativa, veio somar-se uma outra literatura que pretende apontar métodos ou instrumentos eminentemente práticos para entender como é que ela poderia funcionar, que resultados em concreto se poderiam esperar de uma sua implementação, e, eventualmente, as vias mais plausíveis ou realistas de reforma que lograssem aproximar as “poliarquias” atuais – para empregar a precisa expressão de Robert Dahl (1989: 233) – do ideal deliberativo. O autor mais prolífico e conhecido neste âmbito é, provavelmente, James Fishkin.
Fishkin (1991) tem participado na coordenação de projetos vários de implementação e estudo de instrumentos e experiências deliberativas desde 1991, quando imaginou a figura da “deliberative poll”, inspirado pelo diagnóstico crítico das insuficiências das poliarquias de Robert Dahl (1989), e pela sua ideia do “mini-populus” – uma amostra representativa e sorteada de cidadãos, que, após um ano de deliberação (Dahl 1989: 304) emitiria, como órgão consultivo, recomendações aos dirigentes eleitos. Dos seus escritos e pesquisas, emergem duas principais propostas práticas (ou mecanismos) para aproximar as sociedades contemporâneas do ideal da democracia deliberativa: as acima referidas “deliberative polls”, ou pesquisas de opinião deliberativas, e o “Deliberative Day” ou “dia da deliberação”[6].
Fishkin entende que, em geral, e salvo reformas radicais (cuja exequibilidade pode ser discutível), não é possível perseguir em simultâneo três objectivos frequentemente tidos como desejáveis e parte integrante do ideal da democracia (Fishkin 2011: 46 e ss): 1) a igualdade política; 2) a deliberação (isto é, o “refinamento”, carácter reflexivo ou, ainda, para usar a linguagem de Robert Dahl, o “entendimento esclarecido” por parte dos cidadãos das suas preferências políticas), e 3) a “participação maciça”, isto é, a maximização quantitativa das oportunidades para a participação política.
Em última análise, perante este trilema, diferentes concepções (plausíveis) de democracia seleccionam ou dão preferência a diferentes instrumentos, os quais realizarão bem (ou maximizarão) apenas dois destes propósitos em simultâneo, quase sempre em detrimento do terceiro. A democracia deliberativa é uma concepção de democracia que prioriza a igualdade política e a deliberação, colocando em plano secundário e subordinado a participação. O mecanismo mais apropriado para realizar esta concepção passa pelas “deliberative polls”, ou pesquisas de opinião deliberativa. Nestas, é seleccionada aleatoriamente uma amostra que seja representativa da população em geral, sendo os membros da mesma sujeitos, então, a um inquérito preliminar respeitante ao assunto a discutir. Em seguida, estes participantes são convidados a encontrar-se e discutir colectivamente sobre os assuntos e, para esse efeito, são-lhes disponibilizados previamente materiais informativos que se pretende que sejam o mais equilibrados, plurais e objectivos possíveis. Os participantes têm ainda oportunidade para, em pequenos grupos, ouvirem e colocarem questões, quer a especialistas, quer a dirigentes políticos, com opiniões divergentes. Finalmente, é pedido aos participantes que respondam anonimamente a um questionário final em tudo idêntico ao inicial. Na análise de Fishkin e demais académicos envolvidos nestas experiências, dos questionários iniciais aos finais, têm-se verificado significativas mudanças entre os participantes: no grau de conhecimentos revelados sobre o assunto em discussão e nas opiniões sobre o rumo a tomar.
A ideia subjacente é a de que estas pesquisas de opinião deliberativas mostrariam (aproximadamente) qual seria a posição ou o rumo para os quais a população em geral se inclinaria, em relação a um dado tópico, se cada cidadão[7]: 1) tivesse acesso à necessária informação, plural e tanto quanto possível objectiva; 2) beneficiasse de incentivos estruturais e específicos; 3) conseguisse ser preservado dos desincentivos estruturais resultantes quer das desigualdades económicas, quer do facto de o seu voto, o seu quantum minúsculo de poder, diluído como é num demos ingente, nunca ter a possibilidade de ser decisivo[8].
Na verdade, Fishkin aceita e adopta o ponto de vista – tradicionalmente invocado pelos proponentes de concepções elitistas da democracia – de que as pessoas tendem naturalmente a ser “racionalmente ignorantes” da política, em virtude da elevada improbabilidade de que o seu voto e participação possam ser decisivos no contexto de um sistema político de massas. Mesmo quando igualitariamente distribuído, o quantum de poder que a cada um cabe nas modernas poliarquias é minúsculo e, assim, igualmente minúscula a probabilidade de o voto de qualquer cidadão contribuir decisivamente para que se tome uma ou outra decisão, levando a uma noção de baixíssima eficácia política entre o eleitorado. Assim sendo, tendencialmente, seria racional não despender uma significativa quantidade de recursos cognitivos e temporais de modo a tornar-se um cidadão suficientemente erudito em relação a um conjunto de matérias complexas sobre as quais, no final, pouco poderíamos influir. As pesquisas de opinião deliberativas tenderiam a ultrapassar este desincentivo estrutural por dois meios: por um lado, os participantes destas pesquisas são remunerados/compensados financeiramente (à imagem da antiga instituição da mistoforia ateniense) pela sua actividade deliberativa; por outro, o reduzido número total de participantes e o nivelamento das condições intelectuais (“para cima”) elevaria a eficácia relativa da sua participação política[9].
O Deliberation Day, ou “dia da deliberação”, proposta de natureza mais ambiciosa, pretende ser uma tentativa, afinal, de tentar alguma reconciliação dos objectivos da deliberação e igualdade política com o terceiro desiderato de aumentar – não propriamente maximizar – a participação. Ou seja, trata-se de tentar trazer as condições e vantagens típicas da deliberação – associadas a pequenos grupos capazes de dialogarem face a face – ao eleitorado em geral. Para tanto, Fishkin e Ackerman (2004) imaginam a instituição de um feriado pré-eleitoral – duas semanas antes do acto eleitoral propriamente dito – em que os eleitores que a isso se dispusessem seriam aleatoriamente distribuídas por uma infinidade de pequenos grupos locais (“de bairro”) de discussão, onde teriam acesso ao tipo de materiais informativos, opiniões (plurais e bem argumentadas) de especialistas e dirigentes políticos e demais condições – com as devidas adaptações – de que gozam os participantes das pesquisas de opinião deliberativas. Tal como estes, também seriam financeiramente compensados por essa participação e teriam o direito legal a faltar ao trabalho para tal.
Nas esperançosas palavras de Fishkin, se esta instituição resultasse, tudo na política americana teria que mudar: os media, os candidatos, ativistas, analistas políticos, todos teriam de se adaptar a um público agora mais informado e atento. A questão mais séria que se poderá colocar em relação a esta proposta não é se ela será exequível, económica e tecnicamente, mas se será justificado o elevado optimismo quanto aos efeitos regeneradores da mesma sobre a sociedade – mesmo levando em conta as cautelas e contra-argumentos admitidos pelos próprios autores (Fishkin 2011: 188 e ss).
A teoria da democracia deliberativa e os desafios da ordem política global
John Dryzek (2006), por seu turno, tem argumentado crescentemente no sentido de pensar o seu ideal da democracia deliberativa ou democracia discursiva (2000) como relevante para o plano internacional e global. Dryzek vê muitos dos atuais problemas no sistema internacional como resultando de um conflito entre discursos de diversos tipos. Pela complexidade e relativa imperfeição (por comparação com os estados-nação e o seu monopólio interno da força legítima plenamente assegurado) dos mecanismos formais (“democracia eleitoral”) e estruturas institucionais do sistema de relações internacionais, o aspeto discursivo toma particular importância no plano internacional. De uma forma manifestamente vaga, Dryzek alega que a tarefa premente do nosso tempo é assegurar uma democracia transnacional discursiva (que ele opõe, por um lado, ao projecto “da democratização neoconservadora” do intervencionismo unilateral norte-americano para “democratizar” à força outros estados e, por outro, ao projecto da “democratização cosmopolita” assente em propostas reformistas de democratização e expansão das competências e poderes das instituições internacionais). A democracia discursiva transnacional de Dryzek busca o “controlo descentralizado sobre o conteúdo e peso relativo de discursos” globalmente significativos (2006: 154), aproveitando a existência do que já se pode apelidar de uma “esfera pública internacional” para chamar à participação na mesma não apenas, nem principalmente, estados ou organizações interestatais, mas movimentos sociais, ativistas, empresas, media, etc. Os riscos de manipulação, hegemonização e opressão discursiva subsistem, bem como os desafios da globalização capitalista, dos discursos identitários e securitários, entre outros (pós-11 de Setembro), mas seria possível resistir discursivamente e oferecer discursos alternativos, agindo reflexivamente, ao aproveitar as tensões e falhas nas tentativas atuais de hegemonização discursiva (2006: 111-127).
A “viragem sistémica”
Um dos últimos desenvolvimentos mais interessantes na teoria da democracia deliberativa é o que tem sido descrito como a “viragem sistémica” que esta teoria sofreu recentemente, em particular após a publicação de um importante volume colectivo, intitulado Deliberative Systems: Deliberative democracy at the large scale (2012),[10] e no qual participaram destacados exponentes desta corrente. A ideia central subjacente a esta viragem é a constatação de que a qualidade deliberativa das democracias contemporâneas deve ser avaliada a um nível sistémico, uma vez que estes regimes constituem sistemas altamente complexos, formados por “um conjunto de partes distinguíveis, diferenciadas, mas até certo ponto interdependentes” (2012: 4). Ou seja, num tal sistema democrático, há uma certa “divisão do trabalho”, de tal modo que as várias instituições, grupos ou fóruns (desde as instituições do estado, passando por redes informais, media, grupos de pressão, movimentos sociais e ONGs) desempenham fins ou papéis (mais ou menos) específicos e complementares. Estes autores retornam ao problema da escala dos sistemas políticos contemporâneos e à necessidade de, por essa razão, pensar o ideal da democracia deliberativa para lá do ideal quase mitológico da “deliberação face-a-face”. O foco num fórum deliberativo único, de facto, na medida em que pressupõe a ideia de uma deliberação “face-a-face”, não permite tratar adequadamente a deliberação considerando o problema de escala das democracias contemporâneas. Em lugar disso, uma abordagem sistémica focaliza-se numa multiplicidade de fóruns deliberativos, sejam eles institucionalizados ou não, e avalia a deliberação a nível geral, como fruto da interação entre estes diferentes fóruns. O objetivo, portanto, é analisar como os ideais deliberativos de inclusão, reflexão e respeito mútuo são promovidos, ou não, pelo sistema no seu complexo.
Críticas, riscos e desafios
À medida que foram surgindo as propostas que se inscreviam na corrente teórica da democracia deliberativa, foram suscitando não apenas adesão, mas também, e desde o primeiro momento, variadas críticas. Frequentemente, não se trata(ra)m de puras rejeições da corrente ou dos seus desideratos. Mais comummente, questionam determinados pressupostos sob os quais assenta(ria) a democracia deliberativa – ou algumas das muitas versões que este ideal pode assumir, pelo menos – e alertam para riscos e desafios que estas enfrentam e que não teriam sido devidamente reconhecidos, ou, mesmo quando reconhecidos, teriam permanecido sub-teorizados pela literatura. Nesta última secção, procuramos sintetizar algumas destas críticas, expondo as direções tomadas, os principais argumentos e respectivos autores. Novamente, não se buscou uma impossível exaustividade, optando-se antes por proceder a uma selecção que julgamos representativa do que de mais relevante foi surgindo na literatura.
O carácter (ou risco) excludente das propostas deliberativas
Uma das críticas dirigida aos autores proponentes da democracia deliberativa – por vezes em tom de crítica construtiva e não necessariamente para contestar o valor da mesma – diz respeito ao carácter potencialmente elitista e ao risco excludente da mesma. O acerto desta crítica, atendendo a que a categoria da democracia deliberativa inclui um leque extremamente lato e diversificado de posições, depende dos autores que são alvo da mesma. Alguns autores, que podem ser incluídos numa visão abrangente da corrente deliberativa, são, de facto, e explicitamente, elitistas e, quanto a estes, a crítica será plenamente ajustada, mas também acolhida com agrado pelos próprios.
É o caso, por exemplo, de Daniel Bell (1999), o qual sustenta que a deliberação, ou uma deliberação construtiva, que teria as virtudes pretendidas e resultaria nas decisões moralmente mais correctas, dependeria de uma cultura política que reconhecesse e valorizasse a decisão por elites intelectuais como a que existiria em alguns países orientais. Isto parte do pressuposto, claramente explicitado pelo autor, de que as pessoas têm capacidades marcadamente desiguais de reflexão e deliberação e de que, portanto, um sistema político consistentemente deliberativo deve limitar o grau de influência do cidadão comum, deixando que a deliberação e a posterior tomada de decisões políticas ocorram – sem muita contestação – em órgãos compostos por elites seleccionadas segundo critérios meritocráticos (Bell 1999: 74). Em sentido similar, por meio de um argumento mais sociológico e empiricamente fundamentado, a cientista política Diana Mutz (2006) sustenta que há uma tendencial incompatibilidade entre mais participação e mais deliberação: quem mais vota e mais participa tende a estar rodeado dos seus correligionários apenas e a ouvir apenas “o seu lado”; é um “militante” e tende a ver no outro um antagonista, eventualmente até um inimigo, que não importa ouvir, e que, eventualmente, nem se deve ouvir. Pelo contrário, o cidadão que delibera e está disposto a aproximar-se dos outros e a ouvir os seus argumentos, acreditando, em estilo milliano, que assim poderá aceder à parcela de verdade que estas opiniões divergentes contêm, para assim chegar finalmente a uma posição equilibrada, sensata e mais próxima da verdade, não será o fanático da participação e tenderá a afastar-se quando o debate se torna excessivamente militante, polarizado e agressivo. Procurar maximizar a participação tenderia a promover os primeiros e silenciar os segundos, reduzindo o elemento deliberativo no sistema. Haveria que optar, assim, ou por mais deliberação, ou por mais participação; por democracia deliberativa ou democracia participativa, e, para Mutz, não há dúvida de que é da primeira que mais necessitamos. Muitos autores no âmbito da teoria democrática, inclusive alguns autores da corrente da democracia deliberativa estariam assim a iludir-se, ao declararem-se simultaneamente fiéis aos dois objectivos tendencialmente incompatíveis. Russel Hardin (1998), por sua vez, fazendo eco dos antigos elitistas como Schumpeter ou Downs, e, mais remotamente ainda, da tradição de O Federalista, já tinha sustentado que a deliberação, por mais importante que seja na política, não pode ser muito democrática. A deliberação é, por natureza, implausível para grupos alargados: é o apanágio do pequeno número, de corpos exíguos e selectivos, e só pode realmente decorrer ou ter sucesso no seio de órgãos governamentais, judiciais ou consultivos[11]. As exigências intelectuais e motivacionais requeridas para participar de uma forma mais do que meramente passiva ou expressiva, isto é, de uma forma informada e deliberativa, são incomportáveis para o cidadão comum (Hardin 1999: 112-116).
Há que reconhecer, ainda assim, que a maioria dos autores que se filiam ou são identificados com a corrente deliberativista não só não parte de pressupostos explicitamente elitistas como os de Daniel Bell como, pelo contrário, faz questão de enfatizar o igualitarismo moral subjacente à concepção e a importância da participação e inclusão de todos. Ainda assim, frequentemente se entende que os requisitos exigidos para a legitimidade da condução de um debate poderiam ser excessivamente excludentes, ao exigirem uma imparcialidade e racionalidade argumentativa que, no limite, poderiam ser incompatíveis com certas formas de expressão e de contribuição para o debate que, todavia, seriam típicas e quase as únicas disponíveis por parte dos grupos social e economicamente subordinados e oprimidos. Nem sempre é possível, por razões cognitivas ou emocionais, exprimir-se de um modo puramente racional e ponderado, justificando cada posição por meio de uma oferta de razões que o interlocutor “poderia aceitar”. Pelo menos, e claramente, os socio-economicamente privilegiados tendem a ser mais capazes de se exprimir de uma forma tida por socialmente “adequada” e, assim, a ser ouvidos com mais seriedade, o que adiciona uma camada de privilégio discursivo aos demais privilégios de que gozam, ajudando à sua dominação da discussão. A insistência, por exemplo, por parte de Joshua Cohen, de que os resultados numa democracia deliberativa sejam determinados exclusivamente por referência às razões ou justificações oferecidas, embora preliminarmente plausível, poderia ser injusta, excludente e, ao fim e ao cabo, assente numa dicotomia demasiado marcada e empiricamente implausível entre a “razão” e a “emoção”. Uma deliberação alargada e democrática não poderia ou não deveria ser tão restritiva, banindo o discurso emotivo integralmente da deliberação. Os testemunhos mais subjectivos, o “story-telling” ou a retórica também teriam uma função válida ou um contributo a dar para o debate, ao permitirem um vislumbre das perspectivas dos grupos dominados (Mansbridge 1999: 225-226; Young 2000: 52-57).
Neste contexto, Iris Marion Young (2000) foi uma das primeiras teóricas a questionar a teoria da democracia deliberativa – na sua versão habermasiana – por restringir sub-repticiamente os critérios discursivos da deliberação democrática. De acordo com esta autora, as tentativas dos teóricos deliberativos como Habermas no sentido de identificar um tipo de discurso puramente racional – através do qual se possa pôr de lado todo o tipo de parcialidade injustificada e identificar a “força não constrangida do melhor argumento” para assim chegar a um consenso potencialmente universal (Habermas 1998: 306) – implica, na verdade, uma redução injusta das possibilidades de comunicação na esfera pública. O problema com esta operação, como tem argumentado também John S. Dryzek (também ele um prominente teórico da democracia deliberativa) é que ela passa por escolher “um tipo específico de interacção política” que “não é, de facto, neutral, mas que sistematicamente exclui de participação efectiva na política democrática uma diversidade de vozes” (Dryzek, 2000: 58). Young, por exemplo, nota como outras formas discursivas excluídas pelos teóricos racionalistas da deliberação democrática, tais como as saudações, a narração de histórias, e a retórica, têm um elevado potencial de inclusão e deveriam ser permitidas na esfera política. A retórica, por exemplo, é uma forma discursiva com grande valor político em virtude da sua capacidade de tornar um argumento adequado a uma audiência específica, num contexto específico, e de, desta forma, realizar a tarefa crucial de fazer com que essa audiência específica passe do reconhecimento da correção geral de um argumento para o reconhecimento da necessidade de agir (Young 2000: 65-70).
Outros teóricos, na esteira da proposta de Young, têm procurado ampliar os limites discursivos da democracia deliberativa (Allen 2004; Chambers 2009, Dryzek 2010, Gormley 2019, etc.). Todos eles têm recuperado a retórica precisamente pelas razões pelas quais é rejeitada pelas teorias racionalistas da deliberação: porque mostra como as paixões e as perceções podem fazer parte de argumentos políticos válidos; porque julga a partir de um ponto de vista particular e não geral, tendo em consideração as diferentes posições (histórias, situações económicas e sociais, etc.) dos sujeitos políticos; porque considera o desacordo uma condição natural da política e não um sinal de que algo correu mal; porque procura o consenso sem excluir aprioristicamente todas as considerações de carácter parcial, etc. Em vez de defeitos, estas características são vistas como aspectos da deliberação pública que não podem ser dispensados, se quisermos uma visão não só mais realista, mas também, e sobretudo, mais inclusiva, desta prática (Garsten 2011).
De igual modo, mas agora a partir de uma perspectiva mais conservadora, também se argumentou que os deliberativistas (ou alguns deles) se recusam a reconhecer como algumas das suas soluções, nomeadamente, no plano educacional, são mecanismos de exclusão contra os “não-liberais” (no sentido norte-americano), como os cristãos fundamentalistas, na medida em que, para estes, expor os seus filhos, por meio do sistema educacional público, a várias perspectivas e à ideia da “abertura de espírito” já implicaria impor uma doutrina aos seus filhos; uma doutrina de desconfiança generalizada em relação a crenças não-racionalmente analisadas e em confronto aberto e igual com outras crenças. A aparente tolerância de pessoas como Gutmann e Thompson seria uma tolerância apenas pelas opiniões que já partiriam de premissas e mecanismos conceptuais e argumentativos idênticos ou similares, e que, assim sendo, não se estenderia aos que não partissem exactamente dos mesmos pressupostos estritamente seculares, racionalistas e liberais. Os argumentos dos “não-cépticos”, como os cristãos fundamentalistas, ao invocarem, por exemplo, a autoridade primacial das escrituras sagradas, partiriam de regras de evidência e raciocínio inaceitáveis para os círculos elitistas e liberais – no sentido norte-americano, novamente – da academia e não mereceriam, afinal, e a despeito de toda a retórica do “mútuo respeito”, igual consideração (Fish 1999).
Os riscos da busca pelo consenso
Outra frequente crítica, movida por preocupações análogas, prende-se com a insistência na ideia da procura por um consenso justificado, ou, por outras palavras, com a insistência na necessidade da motivação dos interlocutores no sentido de chegar a uma concepção partilhada do bem comum. Um foco excessivo na busca do consenso comunitário poderia obfuscar o facto – essencial – de que, por vezes, os interesses das partes são efectivamente e inerentemente antagónicos e que, nesses casos, a deliberação seria tanto mais útil quanto ajudasse a reconhecer e tornar clara a diferença e antagonismo dos interesses em jogo, permitindo a partir daí a negociação (“bargaining”) franca ou a acomodação explícita entre estes interesses conflituantes. Na verdade, o mascarar da realidade antagónica, do conflito fundamental de interesses, tenderia a resultar em favor das elites e dos seus interesses (Mansbridge 1999: 226).
Uma das versões mais influentes destas críticas foi avançada por Chantal Mouffe (1999, 2000, 2005). De acordo com esta teórica, o modelo da democracia deliberativa elaborado por autores como Habermas e Rawls, baseado na ideia que o consenso racional pode ser obtido através do diálogo, é não só irrealista, demasiado afastado da verdadeira política, mas também normativamente problemático, na medida em que a centralidade atribuída ao consenso inevitavelmente acaba excluindo vozes e perspectivas importantes na sociedade. Toda a criação de um consenso, de facto, de acordo com esta leitura, inevitavelmente cria uma exclusão, assim como cada criação de uma identidade colectiva produz uma fronteira entre um nós e um eles, por mais contingente e instável que este consenso e esta identidade sejam. E o facto de não se reconhecer uma tal exclusão, como acontece com muitas teorias da deliberação que tratam a procura do consenso como um requisito da moralidade e da racionalidade que não tem contraindicações, põe em risco o valor do pluralismo. No entanto, o ponto crucial para Mouffe não é tanto negar o valor do consenso em política – valor que ela reivindica. Em vez disso, trata-se de reconhecer que a procura e articulação de consensos colectivos, a criação de identidades políticas, são processos intrinsecamente políticos – sendo certo que devemos entender este adjectivo nos termos da concepção de política evocada por Carl Schmitt no seu famoso O Conceito do Político (Mouffe 2000: cap. 2; 2005:14-15) – que implicam momentos de inclusão/exclusão. Um aspecto particularmente interessante desta crítica é que ela não se restringe à questão teórica: pelo contrário, para Mouffe, a terceira via seria uma manifestação perigosa desta exaltação do consenso em política na medida em que pressupõe que se atingiu uma época pós-ideológica na qual a política pode (e deve) centrar-se na procura de um consenso racional, técnico, sobre políticas concretas. No entanto, para Mouffe, este tipo de retórica consensualista entrava a possibilidade de qualquer oposição substantiva e, portanto, ao diminuir o leque de escolhas políticas para os cidadãos alimenta a anti-política, abrindo o espaço para partidos extremistas e anti-sistema (Mouffe, 2005, pp. 62–69).
A real justificação do ideal: valor intrínseco ou instrumental?
Outro tipo de crítica sugere que pelo menos alguma da literatura deliberativista seria em grande medida um exercício de auto-ilusão por parte de académicos, no sentido em que, mesmo que se reconheça alguma virtude intrínseca ao ideal da deliberação, a principal razão para a sua defesa prender-se-ia com uma convicção quanto ao seu valor instrumental, ou, se quisermos, com as (boas) consequências ou (bons) resultados que, expectavelmente, decorreriam de um processo assim enformado. Seriam os “resultados de tipo certo”, analisados a partir de uma concepção de justiça substantiva, exterior ao processo deliberativo e democrático, que realmente interessariam aos teóricos. Isto parece ser, por exemplo, o que Stanley Fish alega a propósito de Gutmann e Thompson (Fish, 1999, pp. 100-101). Argumento similar é o defendido por David Estlund (1997), ele próprio um deliberativista. Este rejeita a ideia de que o acordo entre os cidadãos, por mais deliberativo e inclusivo que seja, possa ser constitutivo da bondade de uma determinada medida. Em última análise, o “puro procedimentalismo” não é convincente; não oferece uma justificação suficiente da democracia deliberativa. Esta pode apenas justificar-se, política e moralmente, pelo seu valor epistémico (e instrumental), pela sua capacidade de se aproximar dos resultados moralmente certos – certos, isto é, à luz de critérios exteriores e prévios à deliberação ela própria.
Irrealismo
Não faltaram também, é certo, acusações de um certo irrealismo, sobretudo quanto à efectiva capacidade da deliberação para alterar genuinamente as convicções dos interlocutores. Se a plausibilidade dos efeitos da discussão pública e aberta com os outros sobre o discurso enquanto tal, a um nível mais superficial ou retórico, não parece estar em causa, dúvidas mais sérias se colocaram sempre sobre a capacidade da deliberação influir a um nível mais profundo sobre as convicções e modo de pensar dos diferentes grupos. Noutras palavras, o veredicto permanece em aberto quanto à força real do “efeito civilizador da hipocrisia”, para usar a expressão de Jon Elster (1998: 111)[12].
Haveria também irrealismo se e na medida em que: 1) se espere que a deliberação política seja susceptível de superar divergências em todos os casos, ou 2) na medida em que se espere, com ela, poder sempre chegar “aos melhores resultados”. Como explica o deliberativista Robert Goodin, na verdade, em muitas matérias “sensíveis”, as opiniões divergentes dos cidadãos estão demasiado enraizadas em interesses relevantíssimos e antagónicos e, assim, e tendo em conta que qualquer decisão, num sentido ou noutro, os afectará profunda e irremediavelmente, nenhum processo deliberativo, por mais inclusivo e impecável que possa ser, produzirá um resultado que seja aceitável para o lado perdedor, nem haverá garantia alguma de que esse resultado seja mais correcto do que outro qualquer (Goodin 2008: 83). Igualmente irrealista será pensar que, na prática, qualquer mecanismo deliberativo, qualquer reforma deliberativa, possam, na prática, ser implementados, ou, mesmo sendo implementados formalmente, possam dar os frutos que deles se espera, numa sociedade demasiado dividida (Fishkin 2011: 160 e ss). De algum modo, a democracia deliberativa não deveria ser vista como uma panaceia e requereria ou pressuporia, previsivelmente, alguma mútua confiança prévia entre os cidadãos. Afinal, como Fishkin recorda, entre os cinco critérios decisivos necessários para garantir a qualidade da deliberação, incluem-se a necessidade dos participantes pesarem de forma conscienciosa, de boa fé, os argumentos segundo os seus méritos intrínsecos (“conscientiouness”) e independentemente de quem os avança (“equal consideration”)[13]. Para isso, não basta que os co-participantes estejam presentes e haja uma troca de argumentos. Quando, em virtude de um clima de divisão (étnica, nacional, religiosa, político-ideológica, classista), desconfiança ou hostilidade mútuas e intensas, os interlocutores se vêem como inimigos figadais; mas também quando pressupõem que do outro lado se encontra alguém especialmente desonesto, imoral ou epistemicamente deficiente ou comprometido, o mérito dos argumentos enquanto tal será ignorado ou, na melhor das hipóteses, a avaliação dos mesmos será adulterada em função de quem os apresenta e da percepção do seu valor. Alternativamente, e para preservar temporariamente a unidade da comunidade, por vezes opta-se simplesmente por aceitar a discordância (em vez de tentar resolvê-la) e criar instituições que simplesmente colocam de lado determinados tópicos demasiado sensíveis ou geradores de rupturas (supostamente) insanáveis, isto é, instituições que os “retiram da agenda” temporariamente ou que bloqueiam sine die a sua discussão (Goodin 2008: 67-78). Este tipo de argumento é, contudo, ele próprio discutível, e a estratégia de remoção de tópicos da agenda encerra os seus próprios riscos: de desdemocratização e de preservação e reforço de formas intoleráveis de injustiça e privilégio social.
Discussão ou informação?
Robert Goodin alega que, ao contrário do que sugeriria um certo imaginário, os efeitos da discussão “grupal” entre os “mini-públicos” são menos significativos e importantes do que a informação disponibilizada e a predisposição (a “atitude”). Exemplificando com um exemplo australiano de formação de um “citizen jury”, Goodin sugere que a fase da “deliberação”, isto é, da discussão interna e face-a-face no seio do grupo para chegar a um veredicto/posição final, não induz mudanças significativas no posicionamento individual que já não tivessem ocorrido “na primeira fase”, apelidada de “fase informativa”, em que os participantes teriam acesso a informação objectiva relevante, a testemunhos significativos e ao questionamento de “especialistas” (Goodin 2008: 40-49). Isto sugere que a comunicação interpessoal, o “fórum” deliberativo, a que a viragem deliberativa (“deliberative turn”) deu lugar de destaque, é apenas parte – e não necessariamente a decisiva – do que importa na deliberação, e que muito do que é relevante e valioso na deliberação, que é a chegada a posições mais reflectidas por parte dos cidadãos, depende do que ocorre nas mentes das pessoas. Sem o acesso à informação; sem a sua capacidade e predisposição individuais para levar a cabo um diálogo racional interno (deliberação interna) entre diversas considerações e para imaginar-se na posição do(s) outro(s), os objectivos da deliberação seriam inatingíveis (Goodin 2008: 41-42 e 49-51).
Patologias e limites da deliberação: comunicação hierárquica, manipulação e dominação
Nas modernas e complexas poliarquias capitalistas, o debate político não é, nem pode ser, em regra um debate “face-a-face” e horizontal, em mini-ágoras, como no modelo das “deliberative polls” de Fishkin. Mesmo que fosse implementado o “dia da deliberação” de Fishkin, a discussão com importância para a formação (e alteração) das preferências dos cidadãos continuaria a ocorrer antes e depois deste evento, mas em condições diversas. Ora, todo este outro debate é mediado por grandes organizações, nomeadamente empresas de comunicação social e é tendencialmente vertical e unidireccional (“de cima para baixo”). Não há propriamente consenso nos estudos empíricos no campo dos media e dos seus efeitos, mas uma corrente significativa dentre estes[14], pelo menos, sustenta que, predominantemente, os cidadãos seguem os debates entre as “elites” (políticas e outras) e tendem a reproduzir os posicionamentos dessas elites. Quando há dissenso entre as elites, o público tenderia a dividir-se em linhas que reproduzem a divisão entre as elites; quando a divisão mais acima não existe ou não tem tradução na retórica emitida por estas, a população, à excepção de algumas minorias, assumiria uma postura tendencialmente conformista ou deferente. Isto contraria o pressuposto de que, numa democracia, as elites políticas tenderiam a seguir (mais ou menos servilmente) as (mudanças de) opiniões dos cidadãos. Num certo entendimento optimista dos sistemas poliárquicos, assumido implicitamente por parte da literatura deliberativa, as preferências dos cidadãos são essencialmente um dado exógeno, independente (ou o produto de uma interacção mais ou menos igualitária ou horizontal entre os cidadãos) a que as elites buscariam dar resposta. Mas e se, na esteira de Zaller (1992), o próprio processo de geração das preferências fosse em grande medida endógeno, e fossem as elites e a sua comunicação a gerar, ou pelo menos a conformar em parte, as preferências do público? Nesse caso, haveria amplo espaço para as “patologias da deliberação”, como argumenta Susan Stokes (1998): a manipulação das preferências e adulteração do debate para servir interesses privados.
Nalguns casos[15], podem ser as elites (neste caso, as económicas) que, ao perseguirem um seu interesse específico, por meio do lobbying e do seu poder sobre a comunicação social, a criar convicções erróneas entre o público sobre os pretensos efeitos deletérios (ou, alternativamente, benéficos) de uma política pública, modificando as suas preferências e constrangendo assim, indirectamente, os dirigentes políticos a agir em função destas novas preferências “fabricadas” (Stokes, 1998: 127). Noutros casos, por meio, novamente, do seu poder sobre os media, os “interesses especiais”, podem gerar a percepção (errónea) de que a opinião pública mudou ou está a mudar, e esta percepção bastará para constranger os dirigentes políticos – não apenas o partido no governo, mas até a própria oposição – a modificar a sua postura. Estudos sugerem que o cidadão comum, particularmente o menos conhecedor, tende a adoptar (ou pelo menos a expressar em sondagens) as posições de (supostos) especialistas ou dirigentes em que tende a confiar, pelo menos quando se trata de tópicos sobre os quais ainda não tenha uma atitude particularmente marcada. Daqui resultam algumas conclusões normativas, segundo Susan Stokes (1998, 136), dentre as quais se destacam: a necessidade de uma certa pluralização da propriedade dos meios de comunicação social, de tal maneira que “ajude a minorar a mentalidade de rebanho no seio da imprensa e encoraje análises dissonantes”; a necessidade de auxiliar (inclusive financeiramente) as associações representativas dos cidadãos com menos recursos de modo a que possam combater de forma mais igual na arena da deliberação pública; a necessidade de tornar obrigatoriamente pública a “origem” da informação política que é veiculada nos media – isto prende-se com a realidade muito americana do recurso sistemático a anúncios, pagos por indústrias interessadas, que se apresentam como neutras, não publicitando os patrocinadores; a pluralização político-ideológica – novamente, aqui parece tratar-se de uma preocupação muito americana, atendendo ao sistema rigidamente bipartidário.
Há, todavia, perspectivas mais radicais que vêem o
fenómeno da manipulação como mais profundo, mais estrutural e menos susceptível
de melhoria significativa por via de reformas relativamente moderadas como as
acima expostas. Ainda que se entenda que a ideia de “dominação ideológica” é
simplificadora em excesso, pelo menos se se entender que esta pressupõe – ou
pressupõe sempre – um grupo de pessoas (privilegiadas) que sabe o que é “a
verdade” e que procura deliberadamente (e consegue sempre) enganar os demais
produzindo convicções “técnicas” erradas (isto é, convicções sobre fins e
meios, ou sobre as relações causais entre determinadas políticas e os
resultados expectáveis), ou uma espécie de “falsa consciência”, não há dúvida
de que os media têm sido, para usar a expressão de Luís Felipe Miguel (2000),
um “ponto cego” nas teorias da democracia, inclusive da democracia
deliberativa, com insuficiente teorização ou, frequentemente, sem que ocorra
sequer admissão da magnitude dos desafios normativos e práticos que estes
colocam a estas teorias. Com efeito, têm estado largamente ausentes da
literatura deliberativa: 1) o problema das desigualdades comunicacionais
relacionadas com as desigualdades sócio-económicas; 2) o estatuto dos grandes
meios de comunicação social como “gatekeepers”, isto é, como guardiões
comunicacionais, que, de acordo com os seus critérios e enviesamentos
estruturais, asseguram, privilegiam, ou, pelo contrário, dificultam ou barram o
acesso de perspectivas e narrativas díspares ao grande público, condicionando o
debate na esfera pública; 3) a “economia política” dos media, ou as dinâmicas e
factores intrínsecos aos sistemas de informação sob as atuais condições
económicas que os levariam (alegadamente) a adoptar e privilegiar a informação
que esteja em conformidade com os interesses e perspectivas de elites
económicas. Na verdade, não é preciso assumir que a “dominação ideológica” parta
de uma vontade deliberada e cínica de manipular, seja das elites económicas,
seja dos dirigentes de grandes meios de comunicação social; de que os seus
agentes estejam plenamente conscientes de que o fazem; nem é necessário
pressupor que o efeito é irresistível, ou que, como Przeworski (1998: 150-151)
insiste, não haja capacidade de ideologias rivais sobreviverem e lograrem
resistir à pressão das dominantes. Basta assumir, como fazem Herman e Chomsky (1994),
por exemplo, que, tendencialmente, os interesses materiais subjacentes têm
forte impacto sobre os pressupostos ideológicos dos donos das empresas de
comunicação social (e também nos que, indirectamente, por meio da publicidade,
são decisivos para a sua viabilidade financeira) e que tais pressupostos
influem na escolha posterior dos agentes mais abaixo na pirâmide de comando
destas organizações hierárquicas, bem como na forma como estes vários agentes interpretam
e seleccionam os dados oriundos da realidade (a tarefa dos meios de comunicação
social, afinal de contas). Por fim, o sucesso de uma narrativa ou interpretação
dominante entre as elites, não obstante o peso dos fatores estruturais do
mercado mediático (“os cinco filtros” de que falam Herman e Chomsky), está
dependente de outros fatores que são alheios às mesmas elites ou ao modo como
os media constroem a realidade, como seria visível, no caso americano e
britânico, por exemplo, no desfasamento entre aquela que é a perspectiva da
população em geral a propósito da guerra do Vietnam e Iraque por oposição à das
elites políticas e económicas. Seja ou não, parcial ou integralmente, plausível
esta imagem traçada pelos críticos mais radicais da arquitetura dos sistemas
mediáticos contemporâneos e da economia capitalista; e sejam ou não
empiricamente corretos aqueles modelos menos optimistas, como o de Zaller e
outros, da formação da opinião pública –, certo é que a literatura deliberativa
dialogou muito pouco com esta literatura, muito menos do que seria razoável,
preocupando-se com outros tópicos eventualmente menos estruturalmente problemáticos
para o seu ideal do que com este. Em geral, de resto, parece ter assumido com
demasiada facilidade que as condições necessárias para a democracia
deliberativa eram perfeitamente compatíveis com o que as estruturas sociais e
económicas básicas das hodiernas poliarquias têm para oferecer, o que é tanto
mais surpreendente quando se sabe que John Rawls, de que muitos
deliberativistas são em parte tributários, veio a fazer uma leitura
profundamente crítica da estrutura básica das nossas sociedades e do seu
sistema sócio-económico, nomeadamente por serem incapazes de garantir o justo
valor das liberdades políticas.
[1] Entretanto Rawls foi modificando e flexibilizando esta posição nos anos posteriores à primeira edição de Political Liberalism (de 1993). Na edição paperback deste texto (a de 1996, que usamos nesta entrada), e depois no artigo “The Idea of Public Reason Revisited” (1997), aceitou que argumentos derivados das doutrinas compreensivas pudessem ser parte da razão pública, mas com uma condição: “desde que, e no seu devido tempo, seja apresentada uma razão propriamente pública – e não uma razão atribuível apenas a uma doutrina compreensiva – que seja suficiente para dar sustentação àquilo que se alega ser sustentado pelas doutrinas compreensivas introduzidas” (Rawls 1996: 462).
[2] Embora, no âmbito de duma democracia liberal, este dever se imponha a estes com especial intensidade.
[3] Uma parte das críticas que Habermas recebeu relativamente a este aspecto da sua teoria deve-se, como nota Kevin Olson, ao facto de ter usado – em relação a estas condições ideais para o discurso racional dirigido à compreensão mútua e fundamentada (possibilidade universal de participação, falta de dominação, coerção e distorção comunicativa, etc.) – a expressão “situação discursiva ideal”. Posteriormente, Habermas abandonou esta expressão, uma vez que podia criar equívocos, remetendo aparentemente para uma espécie de estado utópico e, portanto, dificilmente utilizável como base para a legitimidade política duma democracia. Estas condições deveriam antes ser entendidas como idealizações, ou abstrações, de pressupostos implícitos na comunicação. Eles são “pressupostos contrafactuais que as pessoas tentam realizar na prática, em parte com sucesso e em parte sem sucesso” (Olson 2014: 143). Há também que sublinhar que a elaboração destas condições ideais foi feita inicialmente no âmbito da teoria ética, e, portanto, no âmbito da elaboração de princípios morais universais e absolutos. A adaptação destas condições para o âmbito da política, como notam vários seguidores de Habermas, não é automática, mas deve ter em conta uma série de questões de factibilidade prática, entre as quais as de carácter institucional, como, por exemplo, a maneira como a elaboração de direitos políticos, sociais e económicos pode contribuir para a aproximação a estas condições (Benhabib 1996: 70).
[4] Veja-se a análise crítica desta fórmula em Christiano (1996: 37 ss).
[5] Este autor representa bem a continuação, clarificação e aprofundamento filosófico da concepção do ideal democrático de Robert Dahl, em que a igualdade política surge como o valor central da mesma, e é esta mesma importante corrente “dahliana” que inspirará as famosas experiências “práticas” conduzidas por James Fishkin que são abordadas em seguida. Por outro lado, Christiano desenvolve algumas hipóteses – ou deriva consequências – desta mesma concepção que não figuram em Fishkin.
[6] Fishkin (2011: 54-59) considera criticamente outras propostas de mecanismos deliberativos, como os “júris de cidadãos”, as “células de planeamento”, “conferências para o consenso” (“Consensus Conferences”), painéis deliberativos, etc.
[7] Permanecerá sempre a dúvida, ainda assim, sobre se estas pequenas amostras aleatoriamente obtidas da totalidade dos cidadãos (divididas em grupos minúsculos) poderão, sempre e garantidamente, ser realmente representativas de sociedades complexas como as nossas, e do que seriam as suas ideias sob condições deliberativas ideais, tal como argumenta James Fishkin, sobretudo se se pretender atribuir a estes órgãos poder decisório que substitua ou compita com o das instituições eleitoralmente legitimadas.
[8] Durante as “deliberative polls” e mesmo no âmbito do “deliberation day” os participantes são distribuídos por pequenos grupos (de 15 indivíduos) onde decorre a discussão e a atividade deliberativa e, aí, a quota de “poder” (discursivo-argumentativo) individual, a capacidade de influência, de ter uma voz decisiva é recuperada, o que, supostamente, eliminaria, então, o incentivo à “ignorância racional”. Seria racional e proveitoso informar-se quando com essa informação podemos ter um papel decisivo.
[9] Em 2003, foi instituído no estado da Columbia Britânica, no Canadá, uma Assembleia de Cidadãos, muito similar no modo de selecção (sorteio aleatório de cidadãos comuns retirados dos vários distritos) e modus operandi, às “deliberative polls” de Fishkin, com o propósito de estudar, debater e propor uma reforma do sistema eleitoral local que seria depois votada em referendo. No entanto, não tendo alcançado os requeridos 60% de aprovação pelos votantes, a proposta de reforma eleitoral, embora aprovada por uma clara maioria, não foi adoptada. Esta experiência original parece ter sido influenciada parcialmente pela literatura deliberativista, e, por seu turno, ocasionou novas reflexões por parte de muitos “deliberativistas” e cientistas políticos (Warren e Pearse 2008).
[10] Outras contribuições relevantes para esta viragem sistémica incluem Chambers (2017), Hendriks (2016), Kuyper (2016), Rollo (2017).
[11] Curiosamente, no entanto, um autor como David Estlund (2008), que se filia na corrente deliberativista, constrói precisamente um argumento epistémico a favor da democracia, e da democracia deliberativa em particular, sustentando que, ao convidar mais cidadãos (potencialmente, e preferencialmente, todos), com os seus interesses e perspectivas próprios e diferentes, a falarem e ouvir-se mutuamente, este seria o sistema mais tendencialmente conducente à verdade ou aos resultados mais correctos. A noção básica, reminiscente do teorema de Condorcet, poder-se-ia resumir, de forma simplista, no slogan de que “muitas cabeças pensam melhor do que uma só”.
[12] A ideia do sociólogo e filósofo norueguês Jon Elster, formulada a partir da análise comparativa de momentos constituintes do passado, é a de que um contexto adequadamente deliberativo pode por si só gerar resultados (mais “imparciais”) independentemente das motivações internas de cada participante na deliberação, na medida em que os atores se sentem constrangidos por normas sociais que militam poderosamente contra a expressão (explícita) de motivações baseadas no interesse privado (ou seccional) ou em preconceitos (étnicos, confessionais, de género, etc.) e, assim, as propostas (constitucionais, legais ou de políticas públicas) tenderão a ser modificadas no sentido de serem mais consentâneas (pelo menos na aparência) com o interesse público (ou com uma possível concepção do interesse público) (Elster 1998: 100-105). Tendencialmente, os participantes no debate político, tenderão a formular as suas propostas – mesmo quando elas têm a sua real origem num interesse “egoísta” do grupo social a que pertencem – numa linguagem de tipo “imparcial”, associando-as a um objectivo plausivelmente justo. Uma vez tendo feito uso deste argumento de tipo imparcial para fundar a sua proposta, o abandono (demasiado patente) deste tipo de argumento ou consideração torna-se extremamente difícil, pois os agentes sentem-se constrangidos a mostrar consistência moral, sob pena de serem acusados de oportunismo e serem punidos politicamente. Da mesma forma, os participantes no debate sentir-se-iam tentados a formular uma proposta em termos tais que não coincidam tão perfeitamente como gostariam com aquilo que é o seu interesse egoísta, pois, externamente, uma tal coincidência levantaria a suspeita (ou mesmo a convicção) de que o que se procura não é obter uma solução justa ou imparcial (à luz de uma qualquer concepção da justiça ou do interesse público). Isto tenderia a aumentar a resistência à proposta, eventualmente levando à sua derrota.
[13] Os outros três critérios são: 1) a informação (que deverá ser adequada e adequadamente fornecida em termos quantitativos e qualitativos, isto é, de fidedignidade ou precisão); 2) o “equilíbrio substantivo”, expressão pela qual Fishkin quer chamar a atenção para o facto de que são as razões ou argumentos relevantes para um determinado tópico, e não as irrelevantes, como aspectos da vida pessoal de um candidato ou proponente de certa política pública, por exemplo, que devem ser trazidas à colação; e 3) a “diversidade”, ou seja, a garantia de que estão incluídos na discussão os diversos pontos de vista ou perspectivas sobre o tema a discutir (Fishkin 2011: 34 e ss).
[14] Entre outros, a perspectiva de Zaller é aqui clássica (1992).
[15] Um exemplo invocado por Stokes, relativo à realidade norte-americana, é o da legislação ambiental nos anos 90 que teria acabado por ser muito menos restritiva das empresas poluentes do que se pretendia inicialmente.
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Outros artigos
Deliberação; Democracia; Povo.
Como citar este artigo
Ballacci, G. e Baptista, A., “Democracia Deliberativa”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2024), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/democracia-deliberativa>
DOI: https://doi.org/10.34619/tqoj-djsv
Publicado em: 5 de fevereiro de 2024
CEPS, Universidade do Minho
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