especismo

O conceito de especismo tem um conceito central na análise e avaliação da consideração moral, social, política e legal atribuída a animais não-humanos. O especismo consiste na discriminação daqueles que não pertencem a uma determinada espécie. O termo foi introduzido em 1970 por Richard Ryder (2010) e é similar a outros termos geralmente usados para nomear outras formas de discriminação, tais como os termos racismo e sexismo. Perspectivas especistas são prevalentes nos dias de hoje: animais não-humanos sofrem e morrem actualmente de forma maciça, quer pela acção directa dos seres humanos, quer pela recusa destes em ajudá-los, no que constitui uma demonstração de desprezo pelos interesses destes animais.

Assim, tendo em conta o enquadramento acima, o não-especismo consistirá na ausência de especismo, acarretando, portanto, a consideração equitativa dos interesses dos diferentes indivíduos independentemente da espécie a que pertençam. Por sua vez, o anti-especismo distingue-se do não-especismo na medida em que consiste na oposição ao especismo.

Uma definição mais detalhada de especismo

Tendo em conta que o especismo constitui uma instância de discriminação, para compreender o que o especismo é torna-se necessário perceber primeiro o que se entende por discriminação. Discriminação é um conceito comparativo (Lippert-Rasmussen 2014): alguém é discriminado quando é tratado ou considerado de forma comparativamente desfavorável. De facto, uma pessoa não tem de ser lesada ou maltratada para ser tida como objecto de discriminação. Basta apenas ser tratada ou considerada desfavoravelmente em comparação com outros, por um determinado motivo que se considere injustificado. Tomemos o exemplo de um filantropo que doa dinheiro a órfãos europeus e africanos, mas que doa mais aos europeus pois acredita que pessoas com pele branca são mais importantes do que pessoas com pele escura. Este filantropo não está a lesar os africanos, sendo, contudo, racista na medida em que os discrimina. Analogamente, uma pessoa vegana que se abstenha de ferir animais não-humanos ao mesmo tempo que afirme a superioridade dos seres humanos perante os outros animais e que, consequentemente, ajude seres humanos, mas evite ajudar animais não-humanos em situações semelhantes, é uma pessoa especista. Assim, se alguém for tratado desfavoravelmente por razões inteiramente justificadas (por exemplo, se um estado investir menos na provisão de serviços para os mais ricos do que para os mais pobres), tal tratamento não consistirá necessariamente num acto de discriminação.

Demais, é importante salientar que desconsideramos alguém, ou consideramos desfavoravelmente, caso queiramos ver essa pessoa ser tratada de pior forma sem razão que o justifique – isto é, discriminando-a –, ainda que na verdade não a tratemos desfavoravelmente quando em comparação com outras. É por esta razão que podemos discriminar alguém tanto pela forma como a tratamos como pela maneira concreta como a encaramos.

Por fim, tem sido por vezes referido que o processo de definição do conceito de espécie é em si problemático, podendo ser considerado como uma construção que não leva em conta a existência de tipos naturais (Dupré 2002). Se esta crítica se revelar acertada, as atitudes especistas poderão ser postas em causa. Contudo, esta crítica não é necessária para a rejeição do especismo: A definição de especismo pode permanecer neutra quanto a esta questão. De igual modo, a rejeição do especismo é compatível quer com a aceitação, quer com a rejeição da tese segundo a qual as espécies constituem tipos naturais.

Partindo da caracterização acima, podemos agora concluir que o especismo consiste no tratamento ou consideração desfavoráveis e injustificados perante os seres que não pertencem, ou não são classificados como pertencentes, a uma certa espécie (ou grupo de espécies) (Horta 2010).

Contra esta definição, pode ser objectado que o especismo não precisa de ser injustificado. Contudo, em resposta a este argumento podemos contrapor que, caso se favoreça justificadamente os membros de uma certa espécie em detrimento de outra, então tal comportamento não será especista. Por exemplo, salvar animais terrestres de um incêndio florestal em vez de aves voadoras não seria discriminatório, dado que haveria uma justificação clara para tal tratamento diferenciado (não só poderão as aves escapar mais facilmente, como a sua captura e transporte para novos locais é mais difícil). Ao invés, salvar texugos em vez de javalis apenas porque gostamos mais dos primeiros do que dos segundos constituiria um comportamento especista.

A forma mais comum de especismo é aquela segundo a qual se discriminam todos os animais não-humanos perante os humanos, constituindo assim uma forma de discriminação a que podemos chamar especismo antropocêntrico. Todavia, todas as formas de discriminação daqueles que não pertençam a uma certa espécie são especistas (Dunayer 2004). Assim, também é especista, por exemplo, discriminar porcos, galinhas e peixes face a cães e gatos; ou ainda roedores e polvos em comparação com pandas e baleias azuis. A discriminação de animais de pequeno porte, desfavoravelmente considerados em comparação com os animais de grande porte – uma forma de discriminação que Morton (2009) designa por “tamanhismo” (“sizeism”, no original) – também pode ser vista como uma forma de especismo. A maior parte das pessoas manifestam várias posições especistas ao mesmo tempo, combinando assim o especismo antropocêntrico com outros tipos de discriminação especista que dão primazia a certos animais não-humanos sobre outros. Isto também mostra de que forma as discriminações especistas podem favorecer animais pertencentes não apenas a uma espécie, mas a várias espécies diferentes (aliás, é justamente isto que acontece no caso da discriminação dos animais não-símios). Em rigor, talvez devêssemos reavaliar a nossa definição de especismo antropocêntrico, dado que a palavra “humano” não denota a espécie Homo sapiens, mas o género Homo (à qual outras espécies, tais como as espécies Homo erectus ou Homo habilis, entre outras, pertenciam no passado – que a única espécie humana hoje existente seja a Homo sapiens é uma mera contingência). Seria assim provavelmente mais preciso definir as atitudes que muitas pessoas manifestam como revelando um especismo centrado na espécie Homo sapiens, dado que discriminariam membros do nosso género que não pertencessem à nossa espécie, caso estes tivessem sobrevivido.

É importante ter presente, contudo, que especismo não significa “misothery”, i.e.  ódio ou aversão por animais não-humanos (Mason 2009). Naturalmente, alguém que exiba tal atitude perante animais não-humanos, mas não relativamente a seres humanos, será um(a) especista. Mas uma pessoa pode ser especista por discriminar animais não-humanos sem, no entanto, sentir qualquer hostilidade perante eles, bastando para tal atribuir menor relevância aos interesses dos animais não-humanos do que aos interesses dos seres humanos. Este é, na verdade, o tipo de atitude que muitas pessoas revelam.

É também importante salientar que formas de discriminação como o especismo não se manifestam apenas no plano individual ou meramente no plano mental. O especismo vai para além da ideia de que devemos tratar certos animais desfavoravelmente, ou desejar fazê-lo: é também uma disposição psicológica (Caviola et al. 2019) e uma ideologia que nos pode levar a pensar dessa maneira. Mas as práticas reais representam também instâncias de especismo. As acções que tratam alguém de acordo com o que a ideia de especismo prescreve constituem práticas especistas e, portanto, instâncias de especismo. A exploração actual de animais não-humanos enquanto recursos e a recusa de os assistir em circunstâncias sob as quais os seres humanos seriam assistidos são, assim, exemplos de especismo. Para além disso, a institucionalização socioeconómica, política e legal de práticas especistas que ocorrem nos dias de hoje deverá ser vista como uma instanciação do especismo, especialmente se levarmos em conta a relevância destes processos no condicionamento das atitudes especistas individuais.

Antropocentrismo e especismo

O antropocentrismo pode ser definido como o tratamento ou consideração desfavoráveis perante seres não-humanos. Como argumentámos acima, os críticos do especismo afirmam que a maior parte das pessoas são especistas relativamente a animais não-humanos. No entanto, defensores de pontos de vista antropocêntricos têm argumentado que a consideração desfavorável de animais não-humanos é justificada. Se esta tese se revelar correcta, o antropocentrismo não representaria então uma instância de especismo (dado que, como exposto acima, a definição de especismo impõe como critério a ausência de justificação para esse tratamento ou consideração desfavoráveis). Existem vários caminhos que podem ser tomados de forma a sustentar esta ideia:

Perspectivas definicionais. Alguns autores afirmam que os interesses dos seres humanos devem ser tidos como prioritários (ou que devem ser prioritários para nós) por definição, dispensando estes autores qualquer argumento adicional de suporte a esta tese (Diamond 1978; Williams 2006).

Perspectivas não definicionais. Outros, no entanto, sustentam que apenas os seres humanos possuem certos atributos que alegadamente justificariam a atribuição de prioridade a estes. Tais atributos podem assumir diferentes formas:

Atributos intrínsecos que podem ser corroborados. Alguns destes atributos correspondem a características individuais cuja posse pode de alguma forma ser empiricamente verificada. O tipo de atributos a que tipicamente se alude neste contexto é o das capacidades cognitivas, ou outras com estas relacionadas (Descartes 2018; Leahy 1991).

Atributos extrínsecos que podem ser corroborados. Outros consistem em relações cuja posse também pode ser empiricamente verificada. A título exemplificativo, podemos apontar as relações de simpatia ou poder (Narveson 1977; Becker 1983).

Atributos que não podem ser corroborados. Alguns, pelo contrário, são atributos (sejam estes características ou relações) cuja posse não pode de forma alguma ser verificada ou falsificada: por exemplo, a defesa de um qualquer estatuto superior face a outros independentemente das capacidades ou relações realmente observadas em alguém ou da relação privilegiada com alguma divindade (Aristóteles 2016, cap. IV; Reichmann 2000).

Combinações envolvendo dois ou mais dos critérios acima. Por fim, têm também sido consideradas combinações de atributos. Alguns autores têm argumentado, por exemplo, que para nos ser conferida consideração integral, devemos possuir uma qualquer capacidade específica ou estar numa certa relação (Scanlon 1998); outros autores, por outro lado, afirmam que tal nível de consideração pode assentar no estabelecimento de certas relações com seres dotados de capacidades específicas (Cohen 1986; Kagan 2016); outros autores afirmam ainda que podemos ter a capacidade de estabelecer uma certa relação (Goldman 2001).

Caso algum destes critérios se revelasse correcto, o desrespeito por animais não-humanos não configuraria uma posição especista. Não obstante, têm sido apresentados diversos contra-argumentos:

Fugir à questão / Argumentação circular. Os pontos de vista que recorrem a critérios que não podem ser corroborados ou que são meramente definicionais têm sido apontados como carecendo de base sólida, na medida em que assumem nas suas premissas a conclusão a que pretendem chegar (Singer 2004).

Sobreposição de espécies. Outro problema que tem sido discutido na literatura é o da ausência de um critério, não baseado em definição, que seja observado por todos os seres humanos e que não se verifique nos animais não-humanos. Nem todos os humanos dispõem de capacidades intelectuais complexas (alguns seres humanos apresentam capacidades cognitivas menos sofisticadas do que alguns animais não-humanos). Não estabelecemos relações de simpatia com todos os seres humanos. E muitos humanos encontram-se em situações nas quais não detêm qualquer poder, colocando-se assim à mercê da vontade dos outros. Tal significa que estes critérios não são bem-sucedidos no estabelecimento de uma linha que separe todos os seres humanos dos animais não-humanos. Daqui também se conclui que, se admitirmos que todos os seres humanos deverão ser respeitados, estes critérios não poderão ser aceites; consequentemente, estes critérios não podem justificar a desconsideração de animais não-humanos perante os humanos (Pluhar 1995). Este é o argumento da sobreposição das espécies, também frequentemente designado por “argumento dos casos marginais” (Narveson 1977). No entanto, esta designação tem vindo a ser criticada pela sua desadequação, pois a ausência de certas capacidades ou relações não torna um determinado indivíduo marginal relativamente ao significado de pertença à sua espécie (Horta 2014).

Imparcialidade. De acordo com um outro argumento, que podemos chamar de argumento da imparcialidade, as defesas da prioridade dos interesses humanos seriam abandonadas caso conseguíssemos pensar imparcialmente sobre este assunto. Suponhamos, por exemplo, que o nosso conhecimento sobre se nasceríamos como seres humanos ou como outros animais estava ocultado por um véu de ignorância (sendo a probabilidade de se nascer como animal não-humano superior à de se nascer como ser humano, dado que existem muito mais animais não-humanos do que humanos). Ou suponhamos que teríamos de viver as vidas de todos os animais e humanos, em sequência, uma após a outra. Nestes cenários, parece que nenhuma reflexão séria concluiria que é preferível um mundo onde seres humanos adoptam perspectivas antropocêntricas a um mundo onde as rejeitam (VanDeVeer 1979; Rowlands 2016).

Relevância. Finalmente, um outro argumento sustenta-se na ideia de que as nossas decisões devem ser tomadas em concordância com aquilo que for relevante para o impacto dessas mesmas decisões. A invocação da relevância parece ser muito intuitiva. Ora, as decisões sobre a consideração moral a conceder a uma qualquer entidade são decisões sobre se essa entidade pode ser positiva ou negativamente afectada pelas nossas acções ou omissões. Assim, de acordo com o argumento da relevância, o critério para decidir que entidades são moralmente consideradas deve ser aquele que possibilita que tais entidades possam ser positiva ou negativamente afectadas pelas nossas acções ou omissões. E o que determina isto é o facto da senciência (Bernstein 1998; 2015). Isto implica que a senciência deverá ser o critério relevante – suficiente e necessário – para se ser considerado do ponto de vista moral (Singer 2010; Sapontzis 1987). A este argumento podemos dar o nome de “argumento da relevância” (Horta 2010).

Se estes argumentos estiverem correctos, as tentativas de justificar a consideração desfavorável de animais não-humanos caem por terra, mostrando assim que as atitudes habituais actualmente exibidas perantre animais não-humanos são, na verdade, especistas. Para além disso, o argumento da relevância (e, provavelmente, também o argumento da imparcialidade) fornecer-nos-ia não apenas razões negativas contra o antropocentrismo como ainda razões positivas em favor da consideração igual devida a todos os seres sencientes. Estes argumentos poderão proporcionar-nos um critério que nos permitirá atribuir consideração moral não a todos os organismos biológicos classificados como animais, mas antes a todos os animais sencientes. Deste modo, este critério não teria sido arbitrariamente concebido de forma a atribuir consideração moral a todos – e exclusivamente a todos – os animais. Pelo contrário, este critério presumivelmente incluiria todos os animais sobre os quais dispomos de argumentos convincentes para considerá-los sencientes, que são provavelmente a maioria (Gregory 2004; Broom 2014) – incluindo tanto vertebrados como muitos invertebrados (Mather 2001; Knutsson 2015) –, embora excluísse aqueles que não possuem a fisiologia necessária para serem sencientes (tais como as esponjas, que não possuem sistema nervoso). Implicaria também ainda que, caso venham a existir no futuro outros seres sencientes tais como entidades conscientes artificiais, tais entidades teriam igualmente de ser consideradas do ponto de vista moral (Baumann 2017).

É também importante salientar que alguém que considere desfavoravelmente animais não-humanos perante humanos, não com base na distinção de espécie, mas na medida em que não possuem certas capacidades intelectuais ou similares, será ainda especista se estes critérios não forem tidos como justificados. Note-se que alguém que discrimina as mulheres com base na ideia de que estas possuem capacidades inferiores é sexista, tal como alguém que discrimine mulheres simplesmente com base no sexo. Verifica-se o mesmo no caso do especismo. Também as perspectivas que advoguem indirectamente a protecção de animais não-humanos apenas porque assim se beneficiaria, presumivelmente, o ser humano (Kant 1991: 443; Wilson 2002), são especistas, pois em última análise não atribuem consideração moral a animais não-humanos.

O especismo na prática

O especismo implica que animais não-humanos são prejudicados de diferentes maneiras. São, por exemplo, usados de forma maciça enquanto recursos para a produção de um conjunto de produtos e serviços animais (Singer 2010; Horta 2017). Os danos a que os animais são sujeitos devido a estas actividades são evidentes: estes são não apenas submetidos a terríveis sofrimentos e privações, mas também, em muitos casos, abatidos, o que em si constitui uma forma de dano na medida em que os priva de qualquer experiência positiva que poderiam, de outra forma, vivenciar (Cavalieri 2001; McMahan 2008). O número de animais explorado destas maneiras tem sido estimado em 2·1012 (Horta 2017), um valor várias ordens de magnitude acima do número de seres humanos existentes. Este número aumentou significativamente no século passado e prevê-se que possa vir a subir no futuro, à medida que se forem desenvolvendo novas formas de causar danos extensos e significativos a seres sencientes aos quais não é atribuída consideração moral, em nome do interesse dos seres humanos.

Estes malefícios são significativamente superiores aos benefícios que os seres humanos extraem deles (Gompertz 1997). Na verdade, muitas pessoas considerariam estes efeitos como inaceitáveis caso estes afectassem os seres humanos (não levando sequer em consideração o peso dos benefícios; cf. Regan 2004). Torna-se assim evidente que perspectivas que se revelem totalmente indiferentes a estes efeitos negativos são especistas. Existem, contudo, outras posições que aceitam o uso pernicioso de animais não-humanos enquanto recursos, desde que os danos a que estes são expostos seja de alguma forma reduzido (cf. Francione 2012; Haynes 2008). Não obstante, contanto que estas posições rejeitem o uso pernicioso análogo de seres humanos, consubstanciam ainda visões especistas. Recorde-se que o especismo é compatível com qualquer perspectiva que conceda alguma dimensão de respeito a animais não-humanos, bastando que esta atribua a estes animais valor inferior ao atribuído a seres humanos (Zamir 2005).

As perspectivas que se opõem à exploração dos animais enquanto recursos advogam uma posição conhecida por veganismo. O veganismo é, essencialmente, uma posição que consiste em evitar causar dano a animais, quer por via directa (por exemplo, através de caça ou pesca), quer por via indirecta, através do consumo de produtos e serviços animais (v.g. o uso de animais na produção de roupa e alimentos) (Bruers 2015; Horta 2017). Apesar de o veganismo ser uma das posições que decorre da rejeição do especismo, uma pessoa pode ser vegana sem rejeitar o especismo, dado ser possível alguém considerar como injustificado prejudicar os animais não-humanos para nosso próprio benefício, e ao mesmo tempo defender que os interesses destes animais não merecem o mesmo nível de consideração devido aos interesses dos seres humanos.

Além do mais, o especismo também implica que animais não-humanos sofrem danos significativos em resultado da ausência de auxílio em certas situações nas quais estaríamos certamente preparados para os ajudar, caso se tratasse de seres humanos. O escasso apoio, comum nas nossas sociedades, oferecido àqueles que se dedicam a salvar animais abandonados é um sinal deste problema. Outro exemplo claro desta tendência é a reduzida preocupação para com os animais que vivem fora do controlo humano (em meios selvagens, urbanos, industriais ou agrícolas). Esta atitude encontra-se frequentemente associada à ideia de que os animais na natureza têm de sofrer e morrer para desse modo cumprir certos fins ambientais (Sagoff 1984; Shelton 2004). Não se advogam medidas semelhantes no caso dos seres humanos. Tal consideração desfavorável dos animais afectados por estas medidas constituiria, assim, mais um exemplo de especismo. O que, por sua vez, revela a existência de uma tensão entre os pontos de vista ambientalistas e os que defendem a consideração moral devida a seres sencientes (Faria 2011; Dorado 2015): Ao passo que os primeiros se focam em entidades como ecossistemas, ambientes ou espécies, os segundos centram-se nos interesses dos animais individuais como detentores de interesses.

Os animais selvagens sofrem e morrem em massa sistematicamente não apenas em resultado de razões antropogénicas, mas também por causas naturais, que podem ser igualmente nocivas (Cunha & Garmendia 2013; Ética Animal 2019). Estas causas incluem, por exemplo, fenómenos como condições metereológicas, fome, má nutrição e sede, doenças e parasitismo, conflitos com outros animais e ainda stress e lesões psicológicas (Tomasik 2015; Horta 2015). Seria, no entanto, perfeitamente possível ajudar estes animais, existindo actualmente várias formas de alcançar este desígnio, tais como salvamentos, o estabelecimento de hospitais para animais selvagens e de programas de nutrição e vacinação, etc. (Faria 2016; Cunha 2018). A atribuição de consideração moral a animais não-humanos implicaria então a participação nessas actividades e a realização de mais investigação, de forma a desenvolver outras formas de ajudar esses animais (Nussbaum 2006; Faria & Páez 2015). Neste contexto, tem sido proposta a criação de um novo campo de investigação, a “biologia do bem-estar”, com o objectivo de melhorar o nosso conhecimento sobre os danos naturais sofridos pelos animais, bem como sobre as maneiras de mitigar esses danos (Ng 1995; Faria & Horta 2019).

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Outros artigos

Bioética; Direitos dos Animais


Como citar este artigo

Horta, O. “Especismo”, trad. P. Teixeira. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2021), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/especismo>


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DOI: https://doi.org/10.34619/ewb7-5g65


Publicado em: 1 de Fevereiro de 2021

Oscar Horta

Universidade de Santiago de Compostela

<oscar.horta@usc.es>


Tradução portuguesa: Pedro A. Teixeira