Estado

Ponto de partida: a noção weberiana de Estado

A compreensão do Estado encontra ainda hoje nas reflexões de Max Weber sobre o tema o seu ponto de partida porventura mais profícuo. Weber definia o Estado como uma «organização institucional política» cujo «quadro administrativo pode exercer com sucesso o monopólio da força física legítima na execução das suas ordens» (Weber 2010: 104)[1]. Esta definição, simplesmente a mais «comummente usada que se encontra na escrita histórica e política contemporânea» (Kelly 2008: 4)[2], suscita, desde logo, três considerações. Em primeiro lugar, embora não haja dúvida que o critério do monopólio da força física ocupa em tal definição o lugar preponderante, a mesma não se reduz a ele, importando ainda atentar nos critérios do carácter político, institucional, e organizacional do Estado, e ainda no critério da legitimidade do exercício da força física (Anter 2014: 11). Em segundo lugar, a definição em causa distingue-se por abstrair de qualquer dimensão substantiva do Estado e pela sua renúncia a qualquer tentativa de definição baseada nos fins e propósitos do Estado (Anter 2014: 15). Em terceiro lugar, é ainda necessário salientar a afinidade metodológica subjacente à definição proposta por Max Weber com a desenvolvida por Georg Jellinek na sua teoria do Estado. O primeiro aspeto será adiante desenvolvido, mas o segundo e o terceiro merecem algumas considerações introdutórias suplementares.

Abstrair de qualquer dimensão substantiva na definição do Estado significa essencialmente conceptualizá-lo com base nos meios de que se serve e não por referência aos fins que supostamente prossegue. Significa, também, aceitar que o Estado pode prosseguir quaisquer fins. Não significa, todavia, que o Estado deva ser encarado como um fim em si mesmo, nem tão-pouco que a existência de um Estado possa ser encarada como um «cheque em branco» para as respetivas ações. Sustentar que os fins perseguidos pelo Estado não constituem um elemento da sua definição, não significa pôr em causa a existência autónoma de tais fins, ou sequer uma liberdade absoluta do Estado em conexão com eles (Anter 2014: 19, 23).

Dar atenção aos meios – o exercício da força física – em detrimento dos fins – necessariamente sujeitos a uma mudança histórica constante – na definição do Estado, é uma estratégia conceptual especialmente apta ao desenvolvimento de uma teoria das funções do Estado e, além disso, assenta numa abordagem metodológica orientada para a construção de um tipo ideal do Estado moderno[3]. As duas dimensões referidas estão certamente na base da proximidade entre o pensamento de Weber sobre o Estado e a teoria do Estado do jurista Georg Jellinek (1929: 38-40)[4]. A abordagem sociológica de Weber preconiza um paralelismo entre a monopolização da violência e a monopolização do direito na afirmação do Estado moderno, o que significa que Weber encara este último como um instrumento para a proteção do direito (Anter 2014: 175)[5]. E, na verdade, tal paralelismo encontra a sua expressão na lei de todos os Estados modernos. Assim, o artigo 1.º do Código de Processo Civil estabelece que «[a] ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei». Poderíamos ser tentados a afirmar que estamos aqui perante a própria consagração legal, sob forma negativa, da noção weberiana de Estado. Neste ponto, é necessário salientar que na definição funcional proposta por Weber parece ser inerente ao Estado um papel nomotético ou legiferante, no sentido de uma organização que «dá segurança aos seus cidadãos sob um sistema jurídico, que lhes faz saber em que pé se encontram nas suas relações entre si e com os magistrados; e que estabiliza esse sistema contra desafios domésticos e internacionais» (Pettit 2023: 173)[6].

Independentemente de tais afinidades entre o pensamento de Weber sobre o Estado e a análise dos juristas, a verdade é que coube àquele a definição do Estado assente no exercício legítimo do monopólio da força. Importa, pois, precisar qual o alcance atual de tal monopólio e qual o sentido de se considerar que existe uma «relação particularmente íntima» entre o Estado e a violência (Weber 1979: 9; 1992: 158). Para esse efeito, é conveniente compreender, por sua vez, o sentido histórico do monopólio da força, a sua relação com a ideia de soberania e a sua relevância atual.

Se para compreender a noção de Estado segundo Weber nas suas diversas dimensões é útil partir das suas análises mais teóricas, como acima se fez, a intenção específica subjacente a essa análise é mais facilmente detetável na conferência de 1919 sobre A Política como vocação[7]. Aí, numa linguagem certamente mais provocadora e politicamente motivada (no contexto de uma Alemanha vencida e humilhada pelo Tratado de Versailles), afirma Weber o seguinte:

Mas o que é, encarada sob o ponto de vista da consideração sociológica, uma associação “política”? O que é um “Estado”? Este também não é um conceito que se possa definir sociologicamente pelo conteúdo a partir do conteúdo da sua atividade. Raro é encontrar-se, num ou noutro lado, uma tarefa que tenha sido levada a cabo por uma associação política; por outro lado, não há também tarefa alguma que se possa considerar como tendo sido sempre da competência exclusiva dessas associações políticas a que hoje chamamos Estados ou das que foram antecedentes do Estado moderno. Este Estado é sociologicamente definível pela referência a um meio específico que possui, como qualquer associação política: a violência física. […] Naturalmente que a violência não é nem o meio normal nem o único meio de que o Estado se serve, mas é realmente o seu meio específico. Hoje, é especialmente íntima a relação do Estado com a violência. No passado, a violência foi utilizada pelas mais diversas associações, a começar pela associação familiar, como meio inteiramente normal. Hoje, pelo contrário, devemos dizer que o Estado é a comunidade humana que, dentro de um determinado território (o “território” é elemento definidor), reclama (com êxito) para si o monopólio da violência física legítima. É específico do nosso tempo que a todas as outras associações e indivíduos só é concedido o direito à violência física na medida em que o Estado o permite. O Estado é a única fonte do “direito” à violência.» (Weber 1979: 9; 1992: 157-159)

Facilmente se compreende, desde logo, que a noção de Estado assente no exercício legítimo do monopólio da força física implica a expropriação do seu exercício por todas as comunidades diferentes do Estado que conviviam com o poder real antes do surgimento do Estado moderno. Nesse sentido, podemos dizer que a existência da polícia e do próprio direito penal se justificam pela necessidade de impedir o uso da violência por parte de grupos e pessoas que não estão autorizadas a exercê-la pelo Estado. Ao mesmo tempo, esta expropriação significa que o traço distintivo do Estado segundo Weber não consiste no monopólio da violência tout court, mas na apropriação do seu exercício legítimo. Daí que se possa afirmar que a legitimidade «não é adicionada como um atributo contingente a um monopólio da violência que seria concebível sem ela» (Colliot-Thélène 2003: 7). A legitimidade é a própria condição do monopólio da violência que o Estado se arroga.

É, à partida, estranho que na análise de Weber o conceito de soberania prime sobretudo pela ausência. Parece possível identificar duas explicações principais para este facto. De acordo com uma delas, o monopólio da força e a soberania são termos que Weber não distingue conceptualmente, encarando-os como «dois lados da mesma moeda». Neste contexto, o «monopólio da força é principalmente direcionado para os processos domésticos, enquanto a soberania une a perspetiva doméstica com a externa. A distinção entre os dois conceitos torna-se óbvia quando se considera que se pode renunciar parcialmente à soberania no contexto de alianças económicas ou militares, enquanto o monopólio da força é indivisível, pois, na sua ausência, o Estado está comprometido. É por essa razão que o monopólio da força física é a característica fundamental do Estado, e a soberania é mais um critério secundário» (Anter 2014: 28). Neste contexto, pode certamente afirmar-se que se a União Europeia põe em causa a soberania dos Estados-Membros, não afeta em nada o seu monopólio no exercício legítimo da força física. Pode existir Estado com mais ou menos soberania, mas o monopólio da força física é uma questão de tudo ou nada.

Mas, aqui chegados, seria possível ir ainda mais longe. O conceito de monopólio da violência seria um equivalente de uma teoria da soberania, desde que se aceitasse a sua maior proximidade das ideias de Bodin do que das de Hobbes (ou de Rousseau), no sentido em que, tanto em Weber como em Bodin, aquilo que é fixado é o critério de autoridade soberana (o monopólio da violência legítima no primeiro, a competência absoluta para legislar no segundo); não está em causa, como em Hobbes e Rousseau, a relação do indivíduo com o poder, mas apenas a distribuição de poder entre os diferentes órgãos que o reivindicam (Colliot-Thélène 2003: 27). De acordo com este modo de ver, a noção do Estado como monopólio da violência, ao prescindir da ideia de fundamento do poder, ainda essencial ao conceito de soberania, permitiria mais facilmente compreender que os desafios ao monopólio do exercício legítimo da força residem, não nos surtos de violência, nos subúrbios das grandes metrópoles ou em outros lugares, não no aumento das taxas de criminalidade, mas na «multiplicação de órgãos jurídicos e políticos, ao lado, acima, dentro do Estado, que indivíduos ou grupos podem mobilizar para consolidar “chances” cada vez que determinado» (Colliot-Thélène 2003: 29). Se o Estado nunca deteve o monopólio completo da violência, em termos de facto, estaria em vias de o perder, de direito, em face de «uma nova forma de pluralidade de comunidades de direito». Neste contexto, o que o Estado estaria em vias de perder seria o «monopólio da garantia dos direitos subjetivos» (Colliot-Thélène 2003: 29).

De acordo com a narrativa que tenho vindo a expor, a noção de Estado como assente no exercício legítimo da violência assenta na desapropriação do respetivo exercício por comunidades diferentes do Estado e anteriores a ele, que este último levou a cabo a partir do início da modernidade. A mesma noção poderá, todavia, ser posta em causa pela apropriação do exercício legítimo da força física por novas comunidades de direito distintas do Estado, no quadro de uma visão pluralista do direito e da sociedade.

Existe, todavia, uma outra explicação possível para a escassa referência ao conceito de soberania no pensamento de Weber. De acordo com esta explicação, o conceito de soberania está no centro do pensamento de Weber; simplesmente, quando tem em mente a ideia de soberania Weber exprime-se através do conceito de nação, que entende como um valor e, nessa medida, impossível de definir em termos científicos (Weichlein 2007: 110). A convergência entre as ideias de soberania e de nação está bem patente na noção de «nação de senhores» (Outhwaite 2019: 21). De acordo com Weber, «apenas uma nação politicamente madura é uma “nação de senhores” [Herrenvolk], que significa um povo que controla a administração dos seus próprios assuntos e, através de representantes eleitos, participando decisivamente na seleção dos seus líderes políticos». E para que não restem dúvidas que Weber tem também aqui presente a ideia da dimensão externa da soberania, afirma logo adiante que «somente as nações de senhores são chamadas a colocar as mãos nas rodas do desenvolvimento do mundo. Se as nações que não têm essa qualidade tentarem fazê-lo, não apenas o instinto seguro das outras nações se rebelará, como também fracassarão espiritualmente na tentativa» (Weber 1994: 269).

A visão do Estado moderno assente no exercício legítimo do monopólio da força encara-o como um aparelho burocrático cuja legitimidade assenta na legalidade (Dusza 1989: 76). Ao mesmo tempo, o Estado moderno não dispensa a existência de políticos orientados por uma vocação e cuja liderança assenta, em última análise, no seu carisma pessoal. A administração da violência pelo aparelho burocrático não dispensa a existência do político por vocação, alimentado por uma ética da responsabilidade e pela convicção de que apenas pela violência se podem realizar certas tarefas[8].

É precisamente na importância que atribui à nação que Weber mais se afasta do pensamento sobre a soberania e o Estado do seu tempo, em particular de Georg Jellinek. De acordo com a definição bem conhecida de Jellinek, o Estado é uma corporação formada por um povo fixado num determinado território e dotada de um poder político originário (Jellinek 1929: 183; Jessop 2016: 25 ss.). Nesta definição paradigmática, em que se combinam povo, território e poder político, apenas ao Estado cabe estabelecer o direito e adotar normas gerais vinculativas para todos. De acordo com esta definição, «a soberania e o poder são um predicado do Estado, não tanto da nação. Weber mostra-se extremamente cético em relação à ideia nacional democrática de soberania popular democrática e ao avanço dos trabalhadores nas antecâmaras do poder» (Weichlein 2007: 113).

Temos assim duas narrativas opostas sobre a relação de Weber com a soberania: de acordo com uma delas, trata-se de um conceito ausente da sua sociologia, e com boas razões para tal[9]; de acordo com a outra, estamos perante uma categoria que certamente se situa fora da sua sociologia, mas está bem presente no seu pensamento. Atendendo à notória influência de Nietzsche em Max Weber (Anter 2014: 7, 48, 128, 137, 140, 169, 209-210, 218), poderíamos talvez afirmar que este último tem uma visão simultaneamente apolínea e dionisíaca do Estado. Na dimensão apolínea, o Estado é encarado como uma organização essencialmente racional de cuja compreensão é excluída a questão do fundamento; mas a dimensão dionisíaca do Estado e da soberania está presente no valor da nação e na ideia de política como vocação, sem as quais o Estado não subsiste. Uma compreensão adequada do Estado não pode prescindir de nenhuma destas duas dimensões, ainda que assim se transcendam os limites de uma determinada área do saber.

Só no âmbito de uma visão parcelar e incompleta da ideia de Estado segundo Max Weber, como aquela que é, por exemplo, adotada por Catherine Colliot-Thélène, se pode ter a ilusão de que é possível garantir os direitos subjetivos dos indivíduos fora e à margem do Estado. Neste contexto importa questionar em que medida, sem ignorar os desafios à ideia do Estado como monopólio do exercício legítimo da força colocados pela situação histórica atual, esses mesmos desafios não resultarão também de uma inadequada conceptualização teórica da política e do Estado.

É, a este propósito, significativo que a relevância do meio específico do Estado, isto é, o monopólio do exercício legítimo da violência, nos tenha de ser lembrada por Vladimir Putin, nestas afirmações certeiras:

Os EUA não tinham mandato para usar a força contra o Iraque. Na verdade, eu era presidente naquele momento. De qualquer forma, a Rússia não apoiou a invasão. A Rússia, a França e a Alemanha não apoiaram os planos dos EUA em relação ao Iraque. Além disso, alertamos sobre as possíveis implicações adversas, e foi exatamente isso que aconteceu. A euforia inicial das vitórias militares logo deu lugar ao desânimo e ao pessimismo sobre as consequências da vitória. Porque todas as instituições do governo iraquiano foram destruídas, mas nenhuma nova instituição foi estabelecida, pelo menos no começo. Pelo contrário, as forças radicais receberam um forte impulso e os grupos terroristas ficaram mais fortes. Muitos ex-oficiais do exército e agentes de serviços de segurança de Saddam Hussein ressurgiram e juntaram-se às fileiras do que mais tarde evoluiu para o ISIS. Portanto, aqueles que lideraram e apoiaram esta campanha não consideraram as consequências. (…) Quanto à Líbia, o caos causado pelas operações militares ainda prevalece, mas, neste caso, os nossos parceiros ocidentais enganaram-nos (…). A Rússia votou a resolução correspondente do Conselho de Segurança. Afinal, o que diz esta resolução diz, se se ler com atenção? A resolução proibia Khadafi de usar a aviação contra os rebeldes. Não dizia nada sobre permitir ataques aéreos no território líbio. Mas foi o que realmente ocorreu. Então, basicamente, o que aconteceu foi feito contornando o Conselho de Segurança da ONU. E todos estamos cientes do que se passou a seguir. Ainda há caos e confusão; um fluxo de migrantes atravessou a Líbia para a Europa. Khadafi sempre alertou sobre isso, disse-me que foi ele que impediu os migrantes africanos de irem para a Europa. Assim que esse “muro” desapareceu, começaram a invadir a Europa. E agora têm aquilo de que foram avisados. Mas essa provavelmente nem é a questão principal. Mais importante, está a desestabilizar toda a região do Médio Oriente. Quanto à Síria, viemos para apoiar o governo legítimo, e eu gostaria de enfatizar a palavra “legítimo”. (…) Isso não significa que a atual liderança não seja responsável pelo que lá se passa. É responsável, mas daí não se segue que devamos permitir que organizações terroristas capturem a Síria e aí estabeleçam um pseudo-Estado terrorista.[10]

Se os principais desafios à definição weberiana do Estado se colocam no plano da difusão das ideias erróneas e das atuações políticas desastradas orientadas por essas ideias, isso não significa que não existam ameaças bem reais ao monopólio estadual da força física: em várias zonas de África falta uma burocracia racional, avultando em vez dela a existência de relações pessoais e patrimonializadas de domínio; na América do Sul, existem formas de ordenação do poder para-estaduais, como os esquadrões da morte e os grandes cartéis da droga; em vários pontos do Ocidente existem zonas em que os poderes do Estado perderam o controlo. Se a tudo isto adicionarmos um crescimento generalizado da indústria da segurança privada, ficaremos com uma boa noção das falhas no monopólio estadual da força (Kruse 2018: 114). Simplesmente, essas falhas não indicam nenhuma alternativa à ideia weberiana do Estado, tanto mais se tivermos presente que a mesma se centra no exercício legítimo do monopólio da força.

O nexo entre violência e civilidade na compreensão do Estado

A tentativa de compreensão do Estado a partir do fenómeno do monopólio da violência física mostra-se incompleta sem uma referência à contraposição entre Estado e sociedade civil, entendida como um espaço social distanciado do Estado e do mercado em que as pessoas atuam livremente e em conjunto tendo em vista os mais diversos fins, sem perder um sentido de pertença a uma unidade que os transcende. Assim, se o Estado se caracteriza pelo monopólio da violência, a sociedade civil assenta na ideia oposta de civilidade, isto é, na criação de laços voluntários e pacíficos entre os seus membros, cuja atuação se caracteriza por «uma solicitude pelo interesse pela sociedade no seu todo, ou, por outras palavras, uma preocupação pelo bem comum», bem como pelo desenvolvimento de boas maneiras, não apenas nas relações imediatas entre aqueles que estão próximos, mas também nas relações entre opositores políticos, ou religiosos, e nas relações entre anónimos (Shils 1997: 71 e ss., 79 e ss.).

A este propósito parece claro, antes de mais, que, sem o monopólio da violência no Estado, será difícil sequer pensar a possibilidade de existência da sociedade civil, na medida em que «sem tal monopólio, não seria possível estabilizar as relações sociais internas e, portanto, a coexistência pacífica dos cidadãos e a sua auto-organização» (Knöbl 2006: 61). Mas é, porventura, necessário ir mais longe e reconhecer que «a violência e a civilidade não são simplesmente termos opostos, mas que historicamente a civilidade foi antes o resultado (muitas vezes também contingente) do imenso uso passado da violência – uma visão que, tendo em vista a futura estabilização de regiões do mundo ainda não pacificadas, nos dá razões para esperar por decisões difíceis» (Knöbl 2006: 64). Neste contexto, impõe-se reconhecer uma relação de implicação mútua (não uma relação de causalidade) entre Estado e sociedade civil, o que significa que as estruturas desta última existirão enquanto as estruturas do Estado-nação permanecerem intactas e o diagnóstico de uma perda geral da capacidade de atuação do Estado se mostrar incorreto. Isso significa, ao mesmo tempo, que não se deve esperar por uma sociedade civil global ou mundial. Estas considerações apontam para a hipótese da existência de uma forte conexão entre o estabelecimento do monopólio do uso da força no Estado e a verificação dos pressupostos para uma sociedade civil funcional, ou entre violência e civilidade. Em síntese: «toda a civilidade carece de estruturas estaduais que funcionem e de um monopólio da violência efetivo» (Knöbl 2006: 81, 83-84)[11].

Necessária superação do ponto de partida: relação entre Estado e justiça

Se a organização da violência é condição da civilidade, esta última não deixa de afetar e conformar aquela. A ideia de civilidade como um espaço livre do poder e a sua relação com o aparato do Estado permite ainda colocar a questão da relação entre este último e o tema da justiça. Como se relaciona o Estado que assegura o monopólio do exercício legítimo da violência com o ideal da justiça? Philip Pettit sugere que o ideal do Estado, incluindo o exercício da força, se relaciona com o ideal da justiça tal como o ideal da prudência se relaciona com o ideal da moral: «tal como as exigências da prudência sobre um indivíduo formam um subconjunto das exigências da moral, assim também as exigências da estadualidade formam um subconjunto das exigências da justiça. Tal como as exigências da prudência são condições que um agente deve satisfazer para contar como pessoa – ou pelo menos uma pessoa intertemporalmente ligada –, também as exigências da estadualidade são condições que o Estado deve satisfazer para ser um Estado propriamente dito. E como as exigências da justiça podem ser satisfeitas em diferentes graus por um indivíduo, também um Estado pode satisfazer as exigências da estadualidade em diferentes graus» (Pettit 2023: 9-10).

Estas considerações parecem apontar para a ideia de que tal como para atuar moralmente é necessário ser uma pessoa, também para satisfazer as exigências da justiça é necessário ser um Estado. Só a pessoa pode ser moral e só o Estado pode ser justo, ainda que nem toda a pessoa atue moralmente e nem todo o Estado observe as exigências da justiça. O que está aqui em causa é uma relação semelhante àquela que Aristóteles estabelece entre a propriedade privada e a cidade: a propriedade é condição de existência da cidade, mas não parte constitutiva desta última. Do mesmo modo, o Estado é condição de existência da justiça, mas não um seu elemento constitutivo; a sua relevância surge apenas na negativa, na medida em que na ausência do Estado existe uma condição de guerra permanente (Brito 2007: 66-67, 91). A satisfação das exigências da justiça, como a igualdade e liberdade efetivas para todos os seus membros da comunidade e a promoção destes valores no plano da ordem internacional, pressupõe a existência de Estados capazes de assegurar o monopólio do exercício legítimo da violência.

Formas do Estado

Independentemente do que possamos pensar sobre a importância do monopólio da violência na caracterização do Estado e da relação que neste se estabelece entre violência e civilidade, não há dúvida que o mesmo, enquanto forma de vida em comum, pode assumir diversas formas. Por outras palavras, sem prejuízo da posição que o Estado se arrogue sobre a constituição e a estrutura de outras formas de vida distintas – a família, as igrejas, as empresas, as associações, etc. – podemos ainda pensar em inúmeras formas que o Estado pode assumir segundo os mais diversos critérios: Estado federal, Estado unitário, Estado de direito, Estado social, Estado democrático, Estado totalitário, entre outros. Sem excessivas preocupações dogmáticas, ou pretensões de exclusividade, serão aqui discutidas as formas que o Estado pode assumir à luz dos seguintes critérios: (i) o critério da centralização; (ii) o critério da homogeneidade do povo do Estado; (iii) o critério da limitação do exercício do poder (Campagna 2018: 621)[12].

De acordo com o primeiro critério mencionado, a forma do Estado assenta no modo como o mesmo estrutura o poder à luz da ideia de centralização/autonomia. A este propósito pode distinguir-se entre Estados unitários, por um lado, e as federações, por outro lado, em que um Estado federal partilha o poder com os estados federados.

Qualquer Estado pressupõe um determinado território, sendo as respetivas fronteiras os limites do exercício do seu poder legítimo. Num Estado unitário, como Portugal, quando um território assume uma determinada dimensão, é geralmente dividido em municípios, distritos, províncias, regiões, etc. No entanto, todas essas subunidades estão sujeitas ao Estado central em todos os aspetos, e qualquer decisão que tomem, como qualquer disposição local aprovada por tais subunidades, pode, em princípio, ser invalidada pelo Estado central. Para além disso, as subunidades não participam, de um modo geral, na tomada de decisões do Estado central. Isto significa que, num Estado unitário, as subunidades terão uma autonomia necessariamente limitada e sem expressão política. De acordo com uma interpretação ampla desta ideia de autonomia limitada pode até admitir-se que as subunidades em causa tenham o seu fundamento de validade nos seus próprios quadros organizatórios, mas o Estado será sempre condição da sua existência (Machado 1982: 87).  

Pode suceder, no entanto, que a autonomia não seja construída de cima para baixo, como sucede no caso do Estado unitário, mas se exprima na instituição de um novo Estado decidida por diversos Estados unitários anteriormente existentes e que se sobrepõe a eles.

Os Estados Unidos da América e a República Federal da Alemanha são exemplos de Estados que possuem uma unidade territorial e um Estado central que garante a respetiva unidade, mas nos quais as áreas delimitadas territorialmente abaixo desse Estado central, ou federal – estados nos EUA, Länder na Alemanha – gozam de uma relativa autonomia que não foi apenas concedida para aliviar o orçamento do Estado federal. Nos Estados Unidos, os estados determinam principalmente a política nacional por meio do Senado, enquanto na Alemanha o Conselho Federal permite que os Länder participem na elaboração da política nacional. Em certas áreas políticas, os estados federados podem tomar decisões independentes sem que o governo central possa contestá-las ou anulá-las, na medida em que tais decisões se mostrem conformes à Constituição.

As formas do Estado unitário e da federação podem ser encaradas como expressões diferentes da desconfiança, da liberdade e da própria homogeneidade de um povo. Assim, quanto ao primeiro aspeto, nos Estados unitários vale a desconfiança em relação aos atores locais, tidos por incompetentes, egoístas ou mesmo tiranos; pelo contrário, nas federações prevalece a desconfiança em relação ao Estado central, que surge depois das entidades políticas mais ou menos autónomas que sentem a necessidade de o criar em determinado momento histórico (Campagna 2018: 623). Quanto ao segundo aspeto, os defensores do Estado unitário consideram que as ameaças à liberdade provêm sobretudo dos poderes locais e aquela carece de ser garantida por leis gerais, aplicáveis em todo o território; diversamente, os partidários do federalismo considerem os perigos para a liberdade como resultantes da atuação dos dirigentes do Estado federal, devendo por isso ficar reservadas para os Estados federados todas as questões que só a estes digam respeito (princípio da subsidiariedade) (Campagna 2018: 624). Finalmente, o terceiro aspeto exprime, em certa medida, um paradoxo: os Estados unitários que reconhecem autonomias regionais fazem-no em resultado da falta de unidade cultural do seu povo, do ponto de vista linguístico por exemplo, que muitas vezes não existe nas federações (vejam-se os casos dos EUA e da Alemanha).

Pode discutir-se como se situa a União Europeia perante as duas formas de Estado referidas. Não é certamente um Estado unitário, mas também não é uma federação, uma vez que não dispõe de uma constituição resultante do exercício do poder constituinte do povo europeu. Poderá a União Europeia ser caracterizada como uma confederação? O traço distintivo da confederação consiste na afetação da soberania de um Estado e da sua personalidade internacional nos termos previstos no respetivo tratado internacional constitutivo. Em sentido afirmativo, poderia invocar-se o seguinte: (i) tal como a confederação, a União Europeia tem personalidade de direito internacional, sem excluir a personalidade internacional dos Estados membros; (ii) ambas são criadas por tratado; (iii) ambas admitem a secessão (cf. artigos 50.º do Tratado da União Europeia e 218.º, n.º 3, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia); (iv) os órgãos de ambas as estruturas deliberam, em regra, por maioria (cf. artigos 231.º e 350.º do TFUE). Em sentido negativo, e de modo decisivo, cabe referir que a União Europeia tem pelo menos um órgão, o Parlamento, cujos titulares não representam os Estados-membros, nem são por eles designados, mas antes eleitos por sufrágio universal (cf. artigo 223.º do TFUE). Para além disso, vários dos seus órgãos têm competência para a prática de atos cujos efeitos se projetam diretamente na ordem interna dos Estados membros.

O segundo critério que preside à distinção entre formas de Estado atrás apontado prende-se com o povo e visa responder à seguinte questão: o povo de um Estado pode ser identificado com todos aqueles que simplesmente vivem no respetivo território? A resposta a esta questão costuma ser dada através do vínculo da nacionalidade: fazem parte do povo do Estado os nacionais (ou cidadãos), e só estes, que habitam no seu território.

O problema consiste em saber como definir o vínculo de nacionalidade ou cidadania.

São usualmente apontados dois critérios tipo para a determinação do vínculo de nacionalidade: o jus sanguinis, centrado na filiação relativamente a nacionais de certo Estado; o jus soli, baseado no local de nascimento. Se prevalecer o jus sanguinis, pode dizer-se que o conceito de povo se aproxima do conceito de nação; pelo contrário, se prevalecer o jus soli, dir-se-á que o conceito de povo se aproxima do conceito de população. Em qualquer caso, estes dois princípios que definem a pertença a um Estado, embora muitas vezes apresentados como opostos, partilham a mesma conceção de pertença limitada. Pode até dizer-se que partilham um pressuposto de escassez: apenas um número limitado de indivíduos pode adquirir a cidadania num determinado Estado. O modo como ambos os princípios determinam a inclusão num dado conjunto de nacionais assenta numa transferência de título por via do nascimento. É fácil perceber que ambos os critérios são arbitrários, sendo um deles, o jus soli, baseado no acidente do nascimento em determinadas fronteiras geográficas e o outro, o jus sanguini, na pura sorte da descendência (Shachar 2009: 7). E, para além de arbitrários, são também fonte de uma desigualdade persistente, e do mesmo modo arbitrária, entre pessoas de diferentes origens. Ao mesmo tempo, a arbitrariedade da descendência parece assegurar a homogeneidade cultural de um povo, enquanto a arbitrariedade do local do nascimento parece admitir a sua heterogeneidade.

Ayelet Shachar propõe um critério corretivo, ou mesmo alternativo, dos dois princípios indicados, que designa através da expressão jus nexi. Aqui a base para atribuir a cidadania já não seria o nascimento no território de um Estado, nem a descendência de um membro desse Estado, mas uma conexão mais consistente resultante da participação numa determinada comunidade. Tal conexão pretende corrigir a injustiça da situação atual de acordo com a qual os princípios que presidem à atribuição da cidadania incluem muitas pessoas sem ligações substanciais a um Estado, excluindo muitas outras que têm essas ligações (Shachar 2009: 112)[13]. Este princípio seria depois conjugado com um «tributo sobre o privilégio do nascimento», tendo em vista corrigir as injustiças que hoje se verificam em matéria de cidadania através da imposição do pagamento de uma quantia em dinheiro a todos aqueles que beneficiam da vantagem imerecida da herança da cidadania. O produto deste tributo financiaria projetos específicos destinados a melhorar a vida das crianças mais adversamente afetadas pela conexão jurídica estabelecida entre as circunstâncias fortuitas do nascimento e a atribuição de cidadania (Shachar 2009: 15, 96 e ss.).

O problema deste último critério consiste em saber como concretizar a conexão entre uma pessoa e uma determinada comunidade. Basta aí residir durante um determinado período de tempo, ou é necessário exprimir uma identificação com os valores dessa comunidade, incluindo a respetiva língua? O problema da homogeneidade torna a colocar-se. Os estados democráticos liberais modernos enfrentam a questão de saber «quanta homogeneidade podem exigir sem abrir mão de seu caráter liberal-democrático e quanta heterogeneidade podem permitir sem arriscar a dissolução da comunidade política» (Campagna 2018: 626). A pressão cada vez maior do fenómeno migratório na Europa ameaça tornar esta uma equação de resolução impossível.

Finalmente, importa referir o critério que permite distinguir as formas de Estado segundo a limitação do poder. Neste âmbito cabe referir, antes de mais, (i) o Estado liberal-democrático, ou constitucional, em que o poder político, democraticamente legitimado, está juridicamente sujeito ao princípio da separação de poderes e ao respeito dos direitos individuais. Depois, há ainda a considerar (ii) o Estado autoritário, em que não existe uma efetiva separação de poderes, estando o legislativo e o judiciário submetidos ao poder executivo, a oposição política é reprimida e não existem eleições livres; pelo contrário, existe uma ideologia dominante, ainda que a mesma não seja coativamente imposta, e verifica-se uma certa tolerância das liberdades individuais, pelo menos se o respetivo exercício não for publicamente visível. Para além disso, existe também (iii) o Estado totalitário, caraterizado por um poder ilimitado de um líder forte, assente numa burocracia obediente, e pela completa aniquilação do indivíduo, através da respetiva instrumentalização ao interesse da coletividade definido pela classe política, bem como da instrumentalização e manipulação das massas, compostas por indivíduos atomizados e isolados (Arendt 2004: 429)[14]. Finalmente, cabe apontar (v) o Estado falhado, isto é, aquele que se tornou incapaz de manter o «serviço político normal» (Jessop 2016: 221), ou de «providenciar os bens políticos (públicos) a pessoas que vivem dentro de parâmetros designados (fronteiras)» (Rotberg 2004: 2), isto é, segurança, resolução de disputas, participação significativa no processo político, assistência médica e de saúde (em níveis e custos variados), instrução e educação, infraestruturas físicas (como estradas, ferrovias, portos e aeroportos), redes de comunicações, um sistema monetário e bancário, um contexto fiscal e institucional benéfico dentro do qual os cidadãos podem perseguir objetivos empresariais pessoais e potencialmente prosperar, espaço para o florescimento da sociedade civil, métodos de regular a partilha dos bens ambientais comuns. Entre estes diversos traços ocupa especial relevo a (in)capacidade persistente de manter a segurança, associada à violência que se estabelece entre o governo e grupos políticos rivais armados.

Estado, política e democracia

Segundo Georg Jellinek, a «comunidade política significa o Estado ou as associações dotadas pelos Estados de poder dominante. “Político” significa “Estado”; no conceito do político está já pensado o conceito de Estado» (Jellinek 1929: 180). Carl Schmitt, depois de considerar que uma definição de Estado segundo o uso geral do termo, próxima da que foi proposta por Jellinek, apenas nos dá «uma primeira circunscrição, e não uma determinação concetual do Estado» (Schmitt 2015: 41), sustentou, pelo contrário, que «o conceito de Estado pressupõe o conceito de político», sublinhando que de acordo com o uso geral dos dois termos o Estado «aparece, então, como algo político, mas o político como algo estatal – manifestamente um círculo insatisfatório» (Schmitt 2015: 42-43).

A razão que leva Schmitt a desafiar a identificação entre Estado e o político pressuposta na teoria geral do Estado alemã prende-se com a verificação de que o Estado perdeu, entretanto, o «monopólio do político» (Schmitt 2015: 46). Se o Estado liberal do século dezanove detinha ainda esse monopólio no confronto com as associações e grupos não políticos da sociedade, esse deixou de ser o caso no contexto do «Estado total» contemporâneo de Schmitt, isto é, o Estado que põe termo ao «axioma da economia (apolítica) livre do Estado e do Estado livre da economia» (Schmitt 2015: 49). No Estado total, em que a separação estrita entre Estado e sociedade foi superada, o político encontra-se presente em todos os domínios da vida social e torna-se, por isso, necessário alcançar uma sua definição à margem do Estado. É neste ponto que Schmitt introduz a sua famosa noção do político como envolvendo a distinção entre amigo e inimigo e grande parte do seu esforço teórico como constitucionalista e juspublicista consiste em ter sempre presentes os desafios colocados pelos conceitos de amigo e de inimigo – que insistia deverem ser interpretados em sentido concreto e existencial e nunca como exprimindo uma antítese normativa ou puramente espiritual (Schmitt 2015: 54) – de modo a que os mesmos sejam apenas estabilizados no contexto do Estado. Por outras palavras, só o Estado pode civilizar a distinção entre amigo e inimigo e evitar a sua radicalização.

Ao dissociar Estado e política, Schmitt contribuiu para sedimentar uma corrente de pensamento que distingue no seio desta última entre duas realidades: “a política” e “o político”. Poderá dizer-se que «a “política” descreve predominantemente os processos funcionais; o “político”, pelo contrário, serve como um critério para considerar a vida pública na perspetiva de disposições humanas básicas intersubjetivas. No contexto dessa diferenciação, a política aparece como uma “forma reduzida do político”» (Richter 2018: 342). De acordo com esta distinção, enquanto “a política” se prende com a forma do exercício do poder e a produção de decisões vinculativas, quer dizer, com a funcionalidade de processos de controlo, “o político” diz respeito à atuação em comum dos cidadãos no espaço público. Por outras palavras, “a política” é um assunto do Estado; “o político” diz respeito às condições do exercício da liberdade e ao desenvolvimento da democracia[15].

Se esta distinção entre “a política” e “o político” for interpretada como uma dissociação entre o Estado e as condições da realização da democracia o resultado será um enfraquecimento quer do Estado, quer da democracia. Deve, pelo contrário, ser sublinhada a importância elementar do Estado para a existência da democracia[16]. Uma democracia estável não se pode desenvolver sem um Estado seguro, como demonstra o exemplo já mencionado dos Estados falhados: «Um Estado seguro é um pré-requisito fundamental para uma democracia internamente pacífica». Sem uma administração estadual eficiente, as «decisões adotadas democraticamente poderão não ser adequadamente implementadas» (Merkel 2013: 300; Anter 2016: 175). A situação real que se opõe a um Estado que assegura o monopólio da violência não é a ausência deste último, mas a respetiva desagregação e apropriação por organizações de natureza paramilitar, num processo que, num sentido muito real, representa a reversão do processo de construção do Estado associado ao surgimento do Estado-nação moderno, em que a autoridade central deste é substituída por uma confusão de blocos de poder concorrentes (Klare 2004: 117).

Estado, monopólio do exercício legítimo da violência e constituição

A ideia de que o Estado se caracteriza essencialmente pelo monopólio do exercício legítimo da força física coloca naturalmente a questão dos limites do exercício dessa força e, consequentemente, da relação entre o Estado e a constituição. A questão pode ser formulada com recurso a uma alternativa, cujos termos são bem conhecidos: o Estado é anterior à constituição e superior a ela, não apenas cronologicamente, mas também ontologicamente[17]; pelo contrário, a constituição é a base da comunidade política e, logo, também do Estado, sendo aqui essencial a ideia de determinação do poder a partir de baixo, quer dizer, da atuação em conjunto dos cidadãos. Dito de outro modo: a comunidade política adota uma constituição, ou a constituição constitui a comunidade política.

Massimo La Torre mostra bem como esta dicotomia – que identifica com a distinção entre constitucionalismo dos antigos, entendido como um arranjo institucional destinado a limitar o poder soberano, e constitucionalismo dos modernos, em que a constituição não apenas limita, mas constitui o poder – tem consequências, não apenas na perspetiva do monopólio da violência, mas também na perspetiva da ideia de que o poder soberano é aquele que pode exercer a forma mais intensa de violência. Seria esta distinção que explicaria, por exemplo, «o uso desproporcional da força nas sanções do direito pré-moderno. Uma penalidade não é suficiente; deve ser aplicado o tormento, o suplício, para mostrar a plenitude da soberania política» (Torre 2011: 10). O tormento e o suplício, ainda admissíveis nos quadros do constitucionalismo dos antigos, são tendencialmente excluídos no contexto do constitucionalismo moderno.

Se isto é verdade em relação ao tormento e ao suplício, não o é menos em relação a temas bem mais atuais, como a tortura e a extensão do estado de exceção.

É possível extrair da preferência pelo constitucionalismo dos modernos diversas implicações, segundo Massimo La Torre: por um lado, a inadmissibilidade de um excesso da violência pública sobre a violência privada, o que significa que a intensidade do uso da violência admissível por parte do poder público não é diferente daquela que a ordem jurídica reconhece aos privados[18]; por outro lado, o entendimento da constituição como a organização da força, mas «uma organização que dobra a força, a conquista, a treina e a “civiliza”»; finalmente, em jeito de conclusão, o autor afirma que «o monopólio da violência de Max Weber é pensado para um Estado que não é aquele que é chamado a lidar com os atuais assuntos constitucionais comuns europeus» (Torre 2011: 28, 30-31).

Entre estas afirmações, surgidas em 2011, e o momento atual passaram a fazer parte dos assuntos constitucionais comuns europeus, não só a pandemia, mas também a guerra da Ucrânia. Deste modo, se é possível concordar com a primeira e a segunda implicações mencionadas por La Torre, já se afigura mais difícil aceitar a terceira. Não só porque o tempo se encarregou de a desmentir, mas também porque o discurso interpretativo dos juristas é quase sempre preparatório de atos de violência. Como nos recorda o jurista norte-americano Robert Cover, «enquanto a interpretação jurídica for constitutiva, tanto do comportamento violento quanto do significado, enquanto as pessoas estiverem empenhadas em usar ou resistir às organizações sociais da violência para tornar efetivas as suas interpretações, haverá sempre um limite trágico para o significado comum que pode ser alcançado [através do direito]» (Cover 1986: 1629).

As considerações precedentes suscitam ainda o problema de saber se o monopólio estatal da violência pode ser concebido como um princípio constitucional. A este propósito discute-se em que medida a proibição, em regra, da imposição com recurso à força pelos próprios meios de pretensões jurídicas por privados – prevista, por exemplo, no artigo 1.º, antes citado, do Código de Processo Civil – deve ser entendida como uma dimensão do princípio do Estado de direito (Möllers 2011: 274; Pieroth 2011: 57). A tal entendimento têm sido levantadas três objeções.

Em primeiro lugar, de um ponto de vista empírico, todos os ordenamentos jurídicos contêm disposições que permitem aos privados recorrer à força para fazer valer os direitos próprios ou de outrem, como sucede nos casos de legítima defesa e ação direta. Em segundo lugar, de um ponto de vista lógico-jurídico, a definição do Estado através do monopólio da violência encerra um círculo vicioso, pois se apenas o Estado pode exercer uma violência legítima, isso significa que só o Estado define quais os exercícios da força que são legítimos. Ora, isso implica um círculo vicioso, na medida em que o que se pretende definir está já pressuposto no conceito a definir. Em terceiro lugar, na perspetiva da dogmática constitucional, seria erróneo sustentar que o exercício da força física pelos privados não goza de proteção constitucional, tal como o seria encarar o dever de proteção dos direitos fundamentais que incumbe ao Estado como a contrapartida do monopólio estatal da força (Möllers 2011: 275; Pieroth 2011: 57). Isto significa que o exercício da violência física pelo Estado não deve ser encarado enquanto monopólio, mas enquanto regra, em termos de qualquer exercício da violência que não provém do Estado carecer de justificação especial e dever ser encarado como excecional (Möllers 2011: 277).

De acordo com o entendimento que tem vindo a ser discutido, a fundação normativa do monopólio estatal da violência no princípio do Estado de direito é uma opção que não leva devidamente em conta que aquele monopólio não apenas tem a sua origem na monarquia absoluta, mas também aí encontra as suas raízes intelectuais. Ora, o Estado de direito, pelo contrário, surge como um projeto alternativo à monarquia absoluta, sendo que o problema da efetivação das normas surge aí dissociado da violência física (Pieroth 2011: 59-60). Aquilo que avulta num Estado de direito não é a violência física, mas, em última análise, o âmbito da proteção jurídica através dos tribunais. Não cabe aqui discutir o valor que estas considerações possam ter no plano específico da dogmática constitucional, embora pareça que as mesmas assentam numa confusão entre monopólio e regra sem exceção, por um lado, e, por outro lado, entre a admissão da violência como prerrogativa do Estado e a admissão de que nessa prerrogativa está necessariamente contida a possibilidade do exercício da forma mais intensa de violência. Admitir a caracterização do Estado com base no monopólio da violência física legítima não significa, evidentemente, aceitar que a violência, quando é levada a cabo pelo Estado, é necessariamente legítima. Seja como for, as objeções de ordem jurídico-constitucional à definição do Estado como organização capaz de exercer o monopólio da violência física legítima não parecem capazes de pôr em causa a dimensão sociológica desta definição, que consiste em assinalar a falência do Estado quando aquela capacidade é posta significativamente em causa.

Estado como metáfora

É impossível, ou em todo o caso pouco instrutivo, falar do Estado sem uma referência às suas metáforas. A primeira delas encontramo-la no Livro VI da República de Platão quando aí a arte do piloto no comando de um navio surge como a imagem das cidades nas suas relações com os verdadeiros filósofos. Nessa imagem o armador, sem conhecimentos náuticos, é o povo; os marinheiros, em luta uns contra os outros pelo comando do leme, mas sem que jamais tenham aprendido a arte do piloto, e que disputam entre si as atenções do armador de modo a que este lhes confira o comando do navio, são os políticos; finalmente, o verdadeiro piloto, aquele que dá a sua atenção «ao tempo do ano, às estações, ao céu, aos astros, aos ventos e a tudo o que é próprio à sua arte, se quer ser de facto comandante do navio, a fim de o governar, com ou sem o consentimento dos outros» (Platão 2017: 288; 488d), é o rei-filósofo.

A segunda metáfora corresponde ao Leviatã de Thomas Hobbes, cuja representação gráfica no frontispício do livro com o mesmo título Schmitt descreveu nos seguintes termos:

Um homem gigantesco, composto por inúmeros pequenos humanos, segura com o braço direito uma espada, e com a esquerda o báculo de um bispo de forma protetora sobre uma cidade pacífica. Sob cada braço, tanto o secular quanto o espiritual, pode-se encontrar uma fileira de cinco ilustrações: sob a espada, uma fortaleza, uma coroa, um canhão, depois armas de fogo, lanças e bandeiras e, finalmente, uma batalha; correspondentes a estes, em paralelo, sob o braço espiritual: uma casa de Deus, a mitra de um bispo, raios, silogismos e dilemas e, finalmente, um conselho. Estas ilustrações representam os meios típicos de poder e da batalha no confronto secular-espiritual. A batalha política com o seu incessante e irremediável confronto amigo-inimigo, abrangendo todos os domínios da produtividade humana, produz armas específicas. As fortificações e canhões correspondem, por outro lado, a provisões e métodos intelectuais, que não têm menor valor na batalha. (Schmitt 2012: 25-26)

A metáfora deve ainda ser completada com as palavras do próprio Hobbes, quando se refere ao Leviatã como «aquele Deus Mortal, a quem devemos debaixo do Deus imortal, a nossa paz e defesa» (Hobbes 1985: 227). O significado da metáfora de Hobbes é certamente mais distante da metáfora a que recorreu Platão e mais próximo da metáfora do Estado como máquina, presente em Max Weber.

Para Weber, o Estado moderno «parece ser uma máquina, mecanismo, aparelho, empresa ou fábrica. A lei racional pode ser prevista “como uma máquina”; o trabalho realizado pelo judiciário e pela administração é calculável “como uma máquina”; a burocracia funciona “como qualquer máquina”, os seus funcionários são elos de uma “máquina que funciona incessantemente” e os partidos políticos não passam de “máquinas”» (Anter 2014: 175). Ordem e disciplina parecem ser aqui as palavras-chave, ainda que Max Weber não deixe de revelar uma consciência aguda do desencanto que esta imagem do Estado pode suscitar. A este propósito, vale ainda a pena mencionar a metáfora do Estado avançada por Massimo La Torre. Segundo este, o Estado, quando é considerado na perspetiva de uma instituição limitada pela constituição (em vez de ser constituído por ela), surge como um horário de comboios: «o Estado diz-me como irá proceder e ao fazê-lo dá origem a certas expectativas nos seus sujeitos. Nalguns casos, estas expectativas podem até ter um título jurídico. Se o horário dos comboios me assegura que saio de Berlim para Mainz às 10:30, isto dá-me o direito de me dirigir à estação e apanhar o comboio no horário indicado. Se o comboio parte com atraso, ou não parte de todo, terei direito a apresentar uma queixa formal e até talvez a reclamar uma compensação pela inconveniência causada» (Torre 2011: 11).

As metáforas de inspiração weberiana do Estado como máquina ou como um horário de comboios despertaram a crítica de Schmitt, segundo a qual «o Estado moderno parece realmente ter-se tornado o que Max Weber vê nele: uma grande empresa» (Schmitt 2009: 68-69). Deste modo, para Schmitt, Weber compreendeu bem a essência do Estado numa época dominada pelo pensamento técnico-económico e a impossibilidade de o mesmo ser compreendido politicamente (Colliot-Thélène 1995: 216)[19]. Mas qual será, então, a metáfora adequada a captar a essência do Estado pensado politicamente? Será que pensar politicamente o Estado implica o retorno do Leviatã?

Se quisermos encontrar ainda uma outra metáfora, e muito distinta de todas as anteriormente mencionadas, porventura mais ainda do que quaisquer diferenças que possam existir entre elas, a imagem do arquipélago liberal apresentada por Chandran Kukathas é certamente instrutiva, tal como o é o juízo que lhe merecem as anteriores. Segundo Kukathas a metáfora do «corpo político», de que dá como exemplo mais significativo Hobbes, «não tem sido útil para o pensamento liberal, pois encoraja o pensamento de que a existência da vida social depende do funcionamento de uma única ordem política (atemporal) que regulariza a conduta humana e facilita a coordenação de diferentes pessoas e grupos para melhorar o bem-estar e fazer a justiça». A metáfora de Platão é igualmente afastada, na medida em que «mais do que qualquer outra, tem unidade social e hierarquia no cerne de sua compreensão da sociedade. O Estado é concebido como uma entidade cujas fronteiras são claramente demarcadas, uma vez que além de seus limites não existe nada além do oceano; e, como entidade única, é totalmente independente e autossustentável. Além disso, exige, no argumento de Platão, um tipo específico de conhecimento para resistir: o conhecimento disponível apenas para o especialista – o capitão ou verdadeiro piloto – que entende o que é necessário para manter o navio em movimento e no seu curso».

Kukathas substitui estas metáforas por uma outra: a do arquipélago liberal. Trata-se de «uma área do mar contendo muitas pequenas ilhas. As ilhas em questão, aqui, são comunidades diferentes ou, melhor ainda, jurisdições, operando em um mar de tolerância mútua. A sociedade política – e, em particular, a boa sociedade política – não é entendida melhor como um corpo único, ou um reino ideal do justo, ou um navio pilotado por um marinheiro habilidoso, ou mesmo como uma única ilha ordenada com razão. Em vez disso, deve ser entendida como algo delimitado de maneira menos clara, marcado por movimento dentro desses limites e movimento através de fronteiras imprecisas» (Kukathas 2003: 20-22). A ideia de uma qualquer relação entre a boa comunidade política e o Estado moderno e centralizado, mas a que devemos todas as realizações a que não por acaso o nome do Estado surge associado – como Estado de direito, Estado democrático, e Estado de bem-estar, ou Estado social – parece ter-se perdido aqui, definitivamente.

Estado e globalização

Conforme posto em evidência por diversos autores, «a formação de um novo sistema económico centrado nos fluxos transfronteiriços e nas telecomunicações globais afetou duas características distintivas do Estado moderno: a soberania e a territorialidade exclusiva». Uma vez que os processos globais se materializam em territórios nacionais, daí resulta a necessidade de desregulamentação e formação de regimes que facilitem a livre circulação de capitais, bens, informações e serviços. A globalização implica, pois, «uma desnacionalização parcial do território nacional e uma transferência parcial de alguns componentes da soberania do Estado para outras instituições, de entidades supranacionais para o mercado de capitais global». Para além de afetar a soberania e a territorialidade, a globalização tem também impacto numa outra característica do Estado moderno, a cidadania, na medida em que dá origem a uma forma de cidadania económica que permite exigir responsabilidade aos governos, ainda que não pertença aos cidadãos: «pertence a empresas e mercados – especificamente, aos mercados financeiros globais – e está localizada não em indivíduos, não em cidadãos, mas principalmente em atores económicos globais corporativos. O fato de serem globais dá a esses atores poder sobre governos individuais». Excluídos da cidadania económica estão certamente os emigrantes, podendo dizer-se que, ao mesmo tempo que se assiste a uma desnacionalização do espaço económico, se presencia também uma renacionalização do discurso político na maioria dos países desenvolvidos, dando assim origem à «coexistência de regimes muito diferentes para a circulação de capital e de pessoas», cuja viabilidade é questionável (Sassen 1996: xxii, xxv-xxvi).

Sem prejuízo destes efeitos da globalização nos modernos Estados-nações, é necessário, todavia, ter presente que estes últimos «só existem em relações sistémicas com outros Estados-nações. A coordenação administrativa interna dos Estados-nações depende desde o seu início de condições monitoradas reflexivamente de natureza internacional» (Giddens 1985: 4, 276 e ss.). Neste sentido, pode certamente afirmar-se que a globalização não é algo que acontece aos Estados a partir de fora, por assim dizer, mas um processo que inevitavelmente se intensifica à medida que se torna efetivo o processo de «uma rede de Estados se estender sobre todo o planeta» (Pettit 2023: 1).


[1] Tradução modificada; cf. Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, Soziologie, Unvollendet 1919-1920, MWS I/23, Mohr Siebeck, Tübingen, 2014, p. 39. Esta obra, muitas vezes publicada autonomamente, corresponde à primeira parte do livro que Max Weber publicou em 1921 sob o título Economia e Sociedade e que seria, depois da sua morte, ocorrida em 1922, sucessivamente expandido com a incorporação de materiais inéditos.

[2] Pierre Bourdieu acrescenta à definição de Weber, centrada na violência física, a dimensão da violência simbólica, atribuindo a esta última a legitimação da primeira (Bourdieu 2012: 14, 322).

[3] Segundo Weber, «a substância [histórica] concreta do “Estado”, [tal como está presente] nas sínteses formadas por seres humanos que vivem na história, só pode, por sua vez, ser expressa em termos de conceitos ideais-típicos» (Weber 2012: 130). Neste contexto, importa ter presente a advertência de Wolfgang Knöbl: «Weber derivou a sua definição de Estado, incluindo as suas observações sobre o monopólio do uso da força, dos contornos dos desenvolvimentos históricos na Europa central. As suas formulações devem ser entendidas como ideal-típicas, ou seja, as afirmações que fez sobre a formação do Estado são descrições condensadas de processos que nunca poderiam ser encontrados exatamente dessa forma, mesmo na Europa, e que também se tornaram e estão a tornar-se cada vez mais improváveis, quanto mais nos afastamos do contexto centro-europeu» (Knöbl 2006: 63).

[4] Sobre a relação entre Weber e Jellinek e o respetivo contexto, cf. Adair-Toteff 2022: 185–196; Breuer 2020: 93 ss. Salientando, por seu turno, a importância do pensamento de Rudolf von Jhering para a compreensão da ideia de monopólio da violência, cf. Whitman 2002: §§ 5 ss.

[5] Nas suas palavras: «A monopolização da força e a monopolização do direito eram também duas faces da mesma moeda para Weber» (Anter 2016: 162).

[6] De resto, Pettit, ao traçar a genealogia histórica da função nomotética não deixa de mencionar Max Weber (Pettit 2023: 65-66).

[7] São estes, de resto, os únicos textos em que Max Weber trata do conceito de Estado (Colliot-Thélène 2003: 11).

[8] «Quem procura a salvação da sua alma e da dos demais que a não busque pelos caminhos da política cujas tarefas, que são muito diferentes, só podem ser levadas a cabo utilizando a força como meio» (Weber 1979: 94-95; 1992: 247).

[9] Trata-se, aliás, de uma manifestação da atitude que Wolfgang J. Mommsen caracterizou como a «extraordinária contenção intelectual» de Max Weber em questões de juízos de valor (Mommsen 1974: 66).

[10] Entrevista de Vladimir Putin à Al Arabiya, disponível em http://english.alarabiya.net/en/News/world/2019/10/13/Full-transcript-of-Russian-president-Vladimir-Putin-interview-with-Al-Arabiya.html, último acesso em 23 de fevereiro de 2019.

[11] Neste mesmo sentido, Anter 2016: 175; Catherine Colliot-Thélène questiona a aplicação da noção weberiana de Estado aos Estados Unidos da América, como seria demonstrado pela «incapacidade de as autoridades centrais interditarem a posse de armas letais por indivíduos privados» (Colliot-Thélène 2021: 37).

[12] Campagna acrescenta ainda o critério clássico da quantidade dos titulares do poder, que permite distinguir entre monarquias, aristocracias e democracias.

[13] Cf. ainda, em sentido semelhante, a conceção interacionista sugerida por Massimo La Torre, de acordo com a qual a cidadania resultaria de um investimento sério resultante da residência (Torre 2012: 382).

[14] Sobre a diferença entre autoritarismo e totalitarismo, cf., em especial, Loewenstein 1965: 55 e ss., segundo o qual o termo «autoritário» refere-se mais à estrutura do governo do que à estrutura da sociedade, não sendo os direitos dos destinatários do poder à vida, à liberdade e à propriedade postos em causa na medida em que estes não interferiam com o exercício do poder político; pelo contrário, os regimes totalitários procuram moldar a vida privada, a alma, o espírito e os costumes dos cidadãos de acordo com a ideologia dominante. A reconstrução artificial da sociedade é uma das premissas centrais do totalitarismo (Halberstam 1999: 19).

[15] Um modo de ver certamente consistente com esta distinção é a conceção deliberativa de política de Habermas, segundo a qual «a soberania popular procedimentalizada e um sistema político vinculado às redes periféricas da esfera pública política, acompanham a imagem de uma sociedade descentralizada. De qualquer forma, esse conceito de democracia não precisa mais de operar com a noção de um todo social centrado no Estado e imaginado como um sujeito em grande escala orientado para objetivos» (Habermas 1994: 362).

[16] Tal como não pode deixar de se salientar a importância do Estado para a existência de ordem no mercado, ao contrário do que sustentaram todos aqueles economistas que, ao longo do século vinte, apresentaram aquela ordem como produto de uma atuação espontânea em resultado dos sinais dados pelos preços, em vez de um resultado da regulação do Estado (Rodgers 2011: 41 e ss.).

[17] A este propósito é de algum modo paradigmática, ainda em tempos recentes, a afirmação algo críptica de Josef Isensee: «Estado e constituição não podem ser substancialmente separados um do outro e não podem ser comparados entre si como entidades que existem por si mesmas. No entanto, pode-se fazer uma distinção conceitual: a constituição como parte do Estado como um todo, mas também o Estado como resto desse todo, na medida em que não é uma constituição» (Isensee 2010: 201).

[18] Neste sentido, será até possível estabelecer um princípio de equivalência entre os casos de uso da violência pelas forças de segurança e pelos privados (Brito 2009: 431 e ss.).

[19] Vale a pena acrescentar que Schmitt (e também Colliot-Thélène) vê apenas uma “metade” da visão do Estado de Weber, isto é, a “metade” que o encara como uma organização essencialmente racional, deixando de lado a “metade” que o encara como assente na ideia de política como vocação, entendida como uma ética da responsabilidade. A “metade” racional é, aliás, como nota James Q. Whitman, definida por Weber em termos tomados de empréstimo à economia, através da imagem do monopólio da violência legítima. A visão da sociedade subjacente era a de «associações concorrentes – sindicatos, organizações paramilitares, exército, polícia estadual e outras –, todas elas pretendendo ter o direito de praticar a violência. (…) A sociedade era um lugar de associações rivais; e o estado, para Weber e seus seguidores, era simplesmente uma dessas muitas associações que conseguiram superar as outras no mercado da violência» (Whitman  2004: 920; Whitman 2002: § 34).

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Outros artigos

Autoridade; Constituição; Democracia; Estado Falhado; Federalismo; Governo; Legitimidade; Poder Constituinte; Pólis; Razão de Estado; Soberania


Como citar este artigo

Brito, M. N. de. “Estado”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2020; rev. 2023), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/estado>.


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DOI: http://doi.org/10.34619/7rxh-4464


Publicado em: 9 de Março de 2020; revisto a 14 de Abril de 2023

Miguel Nogueira de Brito

Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa

<miguelbrito@fd.ulisboa.pt>