Geopolítica
A Geopolítica é uma ciência auxiliar de apoio à decisão política, mas também ao exercício político no seu todo, tanto interno como externo, e dessa forma relaciona-se intimamente com a ciência política e com a ciência das relações internacionais, em especial com esta última, porquanto o foco externo da geopolítica tem sido, diríamos que quase naturalmente, o mais desenvolvido.
O objecto da geopolítica é a influência do espaço não apenas na acção política em sentido estrito, mas na política enquanto esfera de acção do homem em comunidade, para fazer uso do jargão de Michael Walzer. Assim sendo, podemos definir a geopolítica como a ciência que tem por objecto o estudo do condicionamento geográfico da política, não necessariamente soberana. Querendo-se dizer com isto que a geopolítica sobraça todos os actores políticos da cena internacional que ocupem ou sejam condicionados pelo espaço, mesmo não dispondo da configuração de Estados soberanos. A título de exemplo, organizações internacionais como a ONU ou a NATO, ou de mais difícil identificação estrutural, como a União Europeia, não sendo soberanas, embora permeadas pela lógica soberana, também elas são geopoliticamente condicionadas.
A geopolítica tem hoje uma expressão muito mais humanizada, senão mesmo mais humanista, podemos dizê-lo, no sentido levinasiano da responsabilidade pelo outro homem, e se os problemas de fronteira política física não foram ultrapassados, nem nunca o serão enquanto existirem entidades soberanas, dotadas formalmente de plena majestade, carácter absoluto e discricionariedade excepcional para refazer o seu próprio espaço (desde logo físico) de imposição, não é menos verdade que os problemas colocados a essas soberanias condicionadas pela geografia no seu exercício (e não só a elas mas igualmente aos restantes actores políticos) são sobretudo problemas políticos condicionados pela geografia humana, ou pela ecologia humana, isto é, pelo quadro ecossistémico inter-relacional onde a comunidade política exerce o seu mandato.
De qualquer maneira, a geopolítica não perdeu de todo a incidência dos seus alvores, entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX, marcados pelas questões do controlo físico do espaço e das populações, e das chamadas fronteiras naturais, quase antropomorfizando os acidentes naturais numa perspectiva determinista do espaço. De resto, e embora a dimensão do condicionamento político do espaço ocorra naturalmente, e por conseguinte, sempre também a nível interno, a globalização não apenas tem tornado a relação entre a frente interna e a frente externa cada vez mais dialéctica, como acabou por uma vez mais projectar predominantemente o foco externo da geopolítica.
Desse modo, a geopolítica nunca perdeu totalmente o seu aguilhão inicial: a sua dimensão conflitual sempre à espreita, uma vez que de todo o exercício político (interno ou externo) atendeu sobremodo àquele que tinha a ver com o uso do poder enquanto tal poder e, por consequência, com a luta pelo poder. É evidente que esta sua marca de água inicial não perfaz hoje o cerne da geopolítica, pensemos na geopolítica da paz, nem sequer essa marca deve tramitar sem mais para o campo da estratégia, o campo da hostilidade entre actores políticos distintos, uma vez que mesmo a dinâmica de projecção do poder enquanto tal e sem mais, tem a sua própria arquitectura interior, a sua própria modulação em função da geografia e em função da política no seu todo e dos próprios fins supra-políticos (de que a comunidade política é curadora), os quais não se reduzem à hostilidade e ao tratamento estratégico da mesma. Por outro lado, a própria lógica interna de projecção de poder tem também a ver com a imposição soberana e não necessariamente com pretensões homiziadas sobre a soberania, em particular, nas áreas de fronteira, ou em todos as áreas onde terceiros podem querer fazer valer a sua força em caso de esvaziamento ou tão simplesmente do menor raio de acção do poder político firmado.
Todavia, mesmo no seio de uma geopolítica renovada, importa não esquecer igualmente esse aguilhão acabado de referir e que se prende com a luta pelo poder, porquanto não só esse aguilhão é a tal marca de água que ainda resiste, mas sobretudo porque resiste legitimamente, se não queremos ver a geopolítica amputada de uma dimensão ainda hoje marcante, a do exercício do poder nu. Não é que isso nos possa satisfazer ou comprazer, mas quem pretender abraçar da geopolítica a novel dimensão humanista, frise-se uma vez mais, no sentido levinasiano, ou defender uma geopolítica da paz, isto é, uma geopolítica virada à promoção da paz, integrando uma cultura de paz e próxima dos Estudos para Paz, segundo a qual a paz não é apenas ausência de guerra mas eliminação estrutural dos factores de violência (Correia 2012), não pode fechar os olhos e fingir que não vê a realidade, deixando sem tratamento geopolítico uma dimensão quiçá ainda demasiado omnipresente. Para atingir um desiderato pacífico é igualmente necessário encarar sem rebuço aquilo que de pacífico nada tem.
O excurso até agora empreendido mostra quanto é possível mesclar geopolítica com outro termo afim, geoestratégia, dada a dimensão conflitual da geopolítica, muito exponenciada na história da disciplina e, de qualquer forma, inapagável enquanto a violência, em rigor, a dimensão de hostilidade entre actores políticos, a par da cooperação, acomodação ou competição, for uma dimensão de jure, constitutiva do ser da política, por assim dizê-lo, algo que tem acompanhado a política desde a Idade Moderna, mas não antes. Contudo, convém distinguir os dois termos, o seu significado e extensão, porquanto a interacção não quer dizer sincretismo, e tanto mais que os referidos termos não poucas vezes aparecem misturados seja na literatura, seja nos meios de comunicação em geral, com escasso discernimento.
A geopolítica, como já mencionámos, refere-se a toda acção política, mas sem que o seu acento tónico seja o da acção política em meio conflitual hostil condicionado pela geografia. Por sua vez, a estratégia é envolvente da geoestratégia, enquanto a geopolítica não se resume a um mero conteúdo da política. Isto é, enquanto a geopolítica é uma disciplina e mesmo um saber autónomo, por razões que se prendem com o evolver da sua própria história, muito sucintamente exposta à frente, ainda que pertencendo à área da ciência política e das Relações Internacionais, a geoestratégia é apenas uma forma do saber e do agir no campo estratégico, fundamental, é certo, porquanto as condicionantes geo-físicas e geo-humanas são essenciais a qualquer manobra estratégica. Estamos, portanto, no campo da estratégia aplicada, do estratega. Campo esse, por mais importante que seja em termos práticos, dotado de um lugar específico no edifício estratégico, não detém ulterior autonomia. Em síntese, a geopolítica não só adquiriu um lugar epistemológico e disciplinar no campo científico, algo que não ocorreu com a geoestratégia, como o objecto que os dois termos designam é distinto. A geoestratégia atém-se às relações de conflitualidade hostil entre actores políticos condicionados pelo espaço físico e humano, ecossistémico em geral. Já a geopolítica abrange todo o espectro de relações políticas entre actores distintos condicionadas pelo espaço, bem como a própria política interna condicionada pelo espaço.
É igualmente importante diferenciar em termos epistemológicos a geopolítica da geografia política. A diferença essencial reside no ângulo de análise. Para a geopolítica o estudo da decisão política condicionada pelo espaço é central. Já para a geografia política o eixo da análise é o levantamento de determinadas características espaciais físicas e humanas que influenciam o exercício da política, tal como influenciam o exercício de outras actividades, das quais cabe ao geógrafo indagar no âmbito da sua actividade científica. O mesmo é dizer que o ângulo de análise da geopolítica se centra na política, propondo-se atender às suas condicionantes geográficas, ecossistémicas, se assim quisermos, enquanto o geógrafo político se centra no espaço em si mesmo, o qual, naturalmente, tem repercussões políticas. É óbvio que esta separação se processa em termos ideais, porquanto a tangente entre as duas disciplinas é real e sempre o foi ao longo da história da geopolítica, mais curta do que a da geografia.
A geopolítica enquanto ciência não parece dispor de métodos de análise exclusivos, embora use muito hoje o método geográfico das escalas sobrepostas. Antes, existe uma determinada tonalidade na análise considerando os fenómenos numa perspectiva conjugada da política, em particular, do poder com o meio. Quanto ao sujeito e aos factores de análise, terra, mar e ar, enquanto tais, bem como os contextos materiais e mentais das comunidades políticas e humanas em geral são factores geopolíticos. Todavia, o homem tanto pode ser apreciado como factor ou como agente, mas já o espaço por si mesmo, se não se quer aprisionar o sujeito livre e responsável numa malha determinista, tal como aconteceu ao longo de uma parte significativa da história da geopolítica, deve ser lido enquanto factor e na sua globalidade como eventual actor se e só se conjugado com o homem, caso contrário o fundo ético restabelecido pelas novas abordagens geopolíticas perde-se.
Importa agora esclarecer brevemente a razão pela qual a geopolítica se autonomizou da política, o que não quer dizer outra coisa senão atestar a sua acta de nascimento.
O termo propriamente dito parece provir das reflexões de um académico sueco, jurista e politólogo, Rudolp Kjellen, germanófilo, e conhecido nos meios político-militares alemães na Grande Guerra, que desenvolveu o conceito num livro publicado em 1917, sob o título O Estado como Forma de Vida. Todo um programa de cariz organicista, e no caso, quase determinista, acerca das relações tecidas entre o Estado e o espaço, onde o fundamental é o controlo do território e população. De salientar, no entanto, que o conceito terá sido introduzido pela primeira vez, sem maior desenvolvimento, pelo mesmo autor, num artigo de 1901, intitulado A Política como Ciência.
Todavia, a criação do termo e do conceito não fundam a geopolítica. Embora sejam da mesma época, podemos falar de alguns vultos importantes como geopolíticos avant la lettre. É o caso do almirante norte-americano Alfred Mahan, paladino do poder marítimo e John Halford Mackinder, político e académico inglês, paladino do poder terrestre, ou melhor, advogado do diabo das potências marítimas, sempre pronto a clamar por uma melhor preparação para a defesa face ao colosso terrestre, que no caso de Mackinder sempre foi configurado por aquilo que designou como Heartland, o coração da Terra, o grande espaço euro-asiático dominado pela Rússia primeiro, e posteriormente pela União Soviética (Mackinder 1981).
Apesar destes e da escola possibilista francesa em geografia, entre outros, com Vidal de la Blache, que foi também geopolítico, é na Alemanha, nas primeiras décadas do século XX, que se desenvolve a ciência geopolítica, em torno de uma primeira grande escola, a chamada Escola de Munique, capitaneada, digamos assim, por Karl Haushofer, geógrafo e militar de prestígio (Korinman 1990). Ora, é precisamente via Escola de Munique que se dá a aproximação, nalguns casos, que não o de Haushofer, a colusão entre a geopolítica e o poder nacional-socialista. Irá ser precisamente essa proximidade a custar o prestígio da geopolítica como ciência no fim da 2ª Guerra Mundial, uma vez que a geopolítica é identificada com o poder alemão e com a marcha vitoriosa dos exércitos alemães nos primeiros anos da guerra. Se essa associação da geopolítica ao nazismo não é estranha porquanto a temática do espaço vital, do determinismo geográfico e até racial, do imperialismo, do nacionalismo, do organicismo, do vitalismo foram uma constante da geopolítica nesses anos de fulgor inicial, não é menos verdade que o nazismo não foi o único a namorar a geopolítica. Tanto assim é que antes e depois da 2ª Guerra Mundial, outras potências cortejaram a disciplina e a mesma continuou a ser praticada tanto pelos decisores políticos como em diversas academias. A disciplina não foi proscrita, manteve a tónica nas características físicas do espaço, tendo sido uma ferramenta útil aos contendores no âmbito da Guerra Fria. Contudo, houve realmente uma retracção efectiva da geopolítica na Universidade, resgatada na década de 70 do século XX, nomeadamente em França pelas mãos de Yves Lacoste e Marie-France Garraud, em torno das revistas Hérodote e Géopolitique, respectivamente. Desde então, a geopolítica voltou a expandir-se, porém, com uma ênfase mais possibilista e humanizada, aquela a que já fizemos menção.
Gostaríamos, no entanto, de salientar, que a geopolítica continua muito presa da transformação em actores dos factores espaciais, mormente, terra, mar e dimensão aeroespacial, como protagonistas de uma narrativa metafísica, mormente da dicotomia entre poderes marítimos e continentais, a arrepio das diversas constelações históricas, que mostram que essa confrontação de modo algum assim acontece, atribuindo quase poderes taumatúrgicos de raiz às potências marítimas, de acordo com um relato que se assemelha ora ao relato da Paixão ora a uma gigantomaquia gnóstica, na qual os poderes pneumáticos defrontam os poderes hílicos, epirocráticos, hoje reforçada porquanto as talassocracias são conotadas com a expansão dos poderes liberais e do mercado livre (Fernandes 2007).
Por fim, umas quantas palavras sobre o desenvolvimento da disciplina em Portugal. Cultivada nos institutos superiores militares, foi acolhida na academia portuguesa, principalmente no ISCSP, com acuidade. Numa primeira fase nela pontuou Políbio de Almeida, professor no ISCSP. Todavia, o seu cultivo tem vindo a alargar-se, o mesmo acontecendo com a renovação das temáticas. Uma primeira tentativa não totalmente bem-sucedida do relançamento da geopolítica em Portugal numa escala consonante e com a criação de uma revista totalmente dedicada à matéria, intitulada Geopolítica, aconteceu em Aveiro, com a criação do Centro Português de Geopolítica, em 2007, pela mão de Armando Teixeira Carneiro. No entanto, apesar do Centro Português de Geopolítica não ter singrado, outros vultos, que nele colaboraram e já anteriormente tinham começado a fazer o seu percurso continuam a pontuar. Citamos, entre os mais relevantes, os casos de Pedro Pezarat Correia (Correia 2010), José Manuel Freire Nogueira (Nogueira 2011) e Carlos Manuel Mendes Dias (Dias 2010), todos eles militares, mas desenvolvendo a investigação no âmbito universitário.
Bibliografia
Correia, P.P. (2010), Manual de Geopolítica e Geoestratégia, 2 vols., Almedina, Coimbra.
Correia, P.P. (2012) “Geopolítica e Geoestratégia”, Nação e Defesa, nº131, pp. 229-246.
Dias, C.M.M. (2010), Geopolítica: teorização clássica e ensinamentos, Prefácio, Lisboa.
Fernandes, A.H. (2007), “Reflexões sobre uma Dicotomia Geopolítica”, Geopolítica, nº1, pp. 113-144.
Korinman, M. (1990), Quand l’Allemagne Pensait le Monde. Grandeur et décadence d’une géopolitique, Fayard, Paris.
Mackinder, H. J. (1904-1919-1943), Democratic Ideals and Reality. A study in political reconstruction, Praeger, Westport-Connect (1981).
Nogueira, J.M.F. (2011), o Método Geopolítico Alargado: persistências e contingências em Portugal e no Mundo, IESD, Lisboa.
Outros artigos
Globalização; Realismo Político.
Como citar este artigo
Fernandes, A. H. “Geopolítica”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2019), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/geopolitica>.
DOI: http://doi.org/10.34619/gppv-8403
Publicado em: 15 de Setembro de 2019
FCSH, Universidade Nova de Lisboa
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