Meta-Ética

É comum dividir-se a ética filosófica em duas áreas disciplinares, que lidam com problemas distintos, ainda que relacionados: a ética normativa e a meta-ética. A ética normativa tem por objetivo responder a questões gerais deste tipo: o que devemos fazer?; que princípios devem regular a nossa ação?; em que consiste o bom ou o valioso, do ponto de vista moral? Já a meta-ética pretende olhar para a natureza dessas discussões de caráter normativo e para os pressupostos que elas encerram. Ou seja, se à ética normativa interessa definir qual o princípio da ação correta, ou boa, conforme o critério preferido, à meta-ética interessará perceber o que significa exatamente dizer de alguma coisa que ela é boa, ou correta: são tais propriedades morais propriedades naturais, ou redutíveis a estas? São elas objetivas, pertencentes ao “tecido do mundo”, são essas atribuições construções de caráter intersubjectivo, ou são apenas o resultado da projeção das nossas atitudes subjetivas sobre o que se passa no mundo? Há alguma coisa a que se possa chamar de “factos morais”? E que relação terão eles com outro tipo de factos, acerca da psicologia dos agentes, acerca do bem comum ou individual, ou acerca do que é a “vida boa”? Como é que chegamos a ter conhecimento desses factos? Historicamente, a meta-ética surgiu associada a uma ideia bastante radical de acordo com a qual a discussão ética não pode ser mais do que mera análise linguística (Ayer 1936), e portanto inicialmente a meta-ética ocupou-se sobretudo com questões de tipo semântico, que passavam por definir a natureza e o estatuto das asserções morais: definir, por exemplo, se tais asserções podem exprimir conhecimento, se são de facto juízos, sujeitos a condições de verdade, e que tipo de estado mental elas exprimiriam. Ainda que a ideia radical tenha sido abandonada, esses problemas permaneceram relevantes. Assim, se as questões normativas substantivas serão questões de primeira ordem, os problemas meta-éticos levantam questões de segunda ordem, por meio das quais se pretende averiguar dos comprometimentos metafísicos, epistemológicos, semânticos e psicológicos que a discussão ética suscita.

1. Realismo e anti-realismo moral – a metafísica do valor

1.1. O realismo moral

Talvez a questão fundamental no campo da meta-ética seja a de localizar o lugar do valor (moral) no mundo. As nossas convicções morais, quaisquer que elas sejam, apontam para a existência de determinadas propriedades e factos morais – a tortura é errada, agredir animais é cruel, por exemplo. Importa, porém, discernir qual é o estatuto dessas propriedades morais – o que estamos propriamente a afirmar quando dizemos que “Torturar pessoas é errado”? Estamos a apontar para algum facto objetivo acerca do mundo? Este é um problema metafísico, que diz respeito ao tipo de propriedades que o mundo pode incluir, com o qual estão relacionados o problema epistemológico de saber como se chega a deter conhecimento a respeito de assuntos morais, e o problema semântico de saber qual é a relação entre a linguagem moral e o mundo, ou qual o estatuto cognitivo de que são merecedores os juízos morais. É em torno destas questões que se organiza o mapeamento das posições meta-éticas como realistas ou anti-realistas.

O realista moral é aquele que acredita que existem factos e propriedades morais objetivos (independentes das convicções morais das pessoas, de uma comunidade real ou idealizada) e que ao emitirmos juízos morais o que fazemos é descrever esse estado de coisas. O realista moral é, portanto, também, um cognitivista, na medida em que para ele o propósito dos juízos morais é exprimir crenças acerca do mundo, que podem ser avaliadas como verdadeiras ou falsas, consoante consigam ou não descrever corretamente a realidade a que se reportam. Não se trata apenas de defender que há soluções melhores ou piores para os problemas morais; trata-se antes de defender que existem respostas certas e erradas para os problemas morais precisamente porque existem factos morais.

À primeira vista, a perspetiva realista é a que mais se coaduna com o que são as nossas práticas e discurso comuns – afinal, parece que estamos a fazer coisas muito semelhantes quando dizemos que ‘A relva é verde”, “A mesa é quadrada” ou “O João é cruel”; estamos, nomeadamente, a atribuir propriedades a determinados objetos ou entidades. Neste sentido, afirmar que existem factos morais é equivalente a afirmar que existem aquelas coisas em virtude das quais as condições de verdade dos juízos morais são satisfeitas. A nossa linguagem moral tem não só um carácter aparentemente realista como também objetivista. Afinal, parece-nos legítimo acreditar que há alguma coisa que é o estar certo ou errado do ponto de vista moral, acreditamos que há posições e ações mais acertadas do que outras, que os juízos morais podem ser verdadeiros ou falsos objetivamente, isto é, independentemente do que possam ser as convicções dos indivíduos envolvidos. O realista é, pois, aquele que defende que, neste caso, as aparências não iludem.

E de facto os argumentos apresentados pela perspetiva realista têm na sua base uma espécie de inferência a favor da melhor explicação. O nosso envolvimento em determinadas práticas implica determinadas condições/pressupostos, a saber: que existam respostas corretas para as questões morais, a respeito das quais haja espaço para o engano/erro; que certas ações sejam efectivamente moralmente melhores do que outras, e que isso dependa apenas das próprias características das ações, e não do que as pessoas possam pensar acerca delas. Ora, a melhor explicação para todos estes pressupostos nos quais assentam as nossas práticas morais é apresentada pelo realismo moral. Dados os indícios disponíveis, isto é, tendo em conta a natureza e a função das práticas em que assenta a nossa linguagem moral, a forma mais plausível de as explicar é apelando para a ideia de que existem factos morais objetivos. De outro modo, teríamos de rever radicalmente o entendimento que temos e o uso que fazemos da linguagem moral.

1.2. O anti-realismo moral: a teoria do erro e o não-cognitivismo

No que diz respeito às posições que contrariam o realismo moral, há pelo menos duas formas de se ser anti-realista. Uma dessa formas é assumir a chamada teoria do erro (Mackie 1977), que implica concordar com a ideia de acordo com a qual a linguagem moral tem uma vocação cognitivista e objetivista, mas, uma vez que o mundo não pode incluir coisas como factos ou propriedades morais objetivos, então todos os juízos morais são falsos. Ou seja, os juízos morais de facto expressam crenças, e portanto têm valor de verdade, mas se fizermos um ‘inventário’ do que o mundo pode incluir, teremos que chegar à conclusão de que não há nada no mundo que possa tornar verdadeiro qualquer juízo moral. O pressuposto de que a teoria do erro parte é o seguinte: se queremos pensar acerca da natureza das propriedades e factos a que nos referimos quando falamos sobre questões éticas, não podemos ficar reféns da análise conceptual ou da forma como a linguagem parece ser utilizada, mas teremos, antes, de pensar no estatuto ontológico das entidades para as quais ela aponta (perceber de que forma devem ser entendidos os conceitos nada nos diz acerca de saber se esses conceitos são satisfeitos por alguma coisa). E o ponto principal da argumentação de Mackie é que factos morais objetivos não são o tipo de coisa que possa fazer parte da constituição do mundo – se descrevermos, por exemplo, um assassinato, há determinados aspectos dessa ação que são factuais, que pertencem ao mundo: “X perfura Y com uma faca”; “o sangue jorra”; pode ser também um facto acerca do mundo que alguém, ou a sociedade no seu conjunto, considere que essa ação é errada, mas o próprio ser-errado-da-ação não é um facto que faça parte do mundo. Podemos com efeito descrever a situação em todo o seu detalhe, caracterizar exaustivamente a ação do perpetrador, e mesmo reportar as nossas reações perante o acontecimento mas não conseguiremos apontar para a perversidade do acto; o facto de ele ser errado não é uma dessas características que compõem o mundo, ou se quisermos usar a imagem de Wittgenstein, não figuraria no tal livro que pudesse conter todos os factos acerca do mundo (Wittgenstein 1929). O ponto é óbvio: o mundo mecânico da matéria em movimento é um mundo indiferente, onde o valor não está presente. Para ser possível apelar a factos morais objetivos, considera Mackie, teríamos de admitir a existência de propriedades muito bizarras do ponto de vista metafísico, diferentes de tudo o resto na natureza, na medida em que estaríamos a referir-nos a propriedades intrinsecamente prescritivas, propriedades que tivessem em si mesmas inscritas o caráter objetivo e irrecusável de “dever ser seguido”. Ora, entende Mackie, as propriedades por meio das quais podemos descrever o mundo não nos dizem o que devemos fazer – são inertes, ou neutras, do ponto de vista da motivação para a ação; não dão qualquer indicação normativa necessária. (É óbvio que Mackie aceita que há certas ações que “devem” ser levadas a cabo, mas apenas num sentido puramente instrumental – se lhe juntarmos o ingrediente motivacional, o desejo do agente. Isto é, há factos descritivos que podem ter interesse do ponto de vista prático, mas apenas contingentemente; é importante, por exemplo, do ponto de vista prático, ter conhecimento do facto de que beber refrigerantes faz mal à saúde, caso eu esteja interessada em conservar a minha saúde. O que está sob ataque é apenas a validade objetiva do imperativo categórico – pois essa seria uma outra forma de dizer que existem factos morais objetivos.)

A outra forma de se ser anti-realista passa por negar não só a ideia de que existem factos morais objetivos como também a ideia de que a função dos juízos morais é expressar crenças acerca da forma como o mundo é. Esta é a opção não-cognitivista. Os não-cognitivistas não acreditam que o mundo possa incluir coisas como factos morais, mas não supõem que a circunstância de não existirem aquelas coisas que fariam dos nossos juízos morais verdadeiros constitua um problema, uma vez que na realidade a função dos juízos morais não é descrever o mundo; eles não exprimem crenças mas sim estados mentais não-cognitivos, como desejos, emoções, preferências, atitudes de aprovação/desaprovação. Esta perspetiva assumiu diferentes formas e roupagens ao longo da evolução da meta-ética, desde o emotivismo de Ayer dos inícios do século XX, até, por exemplo, ao projetivismo de Simon Blackburn (1996), para quem a solução projetivista é a única forma de resolver os problemas com que o realismo moral se defronta (basicamente, a acusação de que o discurso moral nos forçaria a aceitar uma espécie de realismo platónico), sem ser preciso assumir que todos os juízos morais são falsos (pois qual seria a utilidade do discurso moral, nesse caso?).  Se o realismo moral convoca e inunda o mundo de propriedades estranhas para dar sentido ao discurso moral, a solução projetivista sustenta que as propriedades que parecem pertencer genuinamente às ações e acontecimentos seriam apenas a projeção ou o reflexo das nossas respostas subjetivas perante um mundo que de facto não contém essas propriedades. Blackburn assevera que uma explicação projetivista pode dar conta de todas as propriedades aparentemente realistas e cognitivistas com que o discurso moral parece comprometer-nos, incluindo a ideia de que podemos falar de verdade e erro a propósito das asserções éticas (estas seriam verdadeiras não porque se reportam a uma matéria de facto, mas porque estão sujeitas à crítica e ao exercício da racionalidade – há sensibilidades éticas melhores do que outras). A grande crítica endereçada às propostas não-cognitivistas, contudo, é que estas introduziriam um elemento de arbitrariedade e discricionariedade que não permite fazer da discussão ética uma discussão assente em bases racionais, desde logo porque o elemento essencial de uma avaliação moral seria algo a propósito do agente (as suas atitudes subjetivas) e não a propósito da forma como o mundo é.

2. O realismo naturalista

Uma das formas de encontrar saída para esse problema central da meta-ética que consiste em acomodar o valor moral no mundo passa por argumentar que não há nada de bizarro com as propriedades morais que atribuímos a pessoas ou a ações – tais propriedades são propriedades naturais (isto é, podem ser descobertas por meio de investigação empírica). De que maneira se salva o realismo? Assumindo que as propriedades e os factos morais existem, e que portanto o mundo contém aquelas coisas em virtude das quais podemos dizer que “a escravatura é errada” é uma descrição correta desse mundo. Só que essas propriedades são passíveis de ser descritas (alguns considerarão que poderão mesmo ser reduzidas) em termos puramente naturais, apelando em última análise a características biológicas ou psicológicas do ser humano, a factos acerca da nossa constituição natural. Philippa Foot (2003), Peter Railton (1986) ou Frank Jackson (1998), por exemplo, são alguns defensores de propostas naturalistas, ainda que bastante diferentes entre si. Portanto, não haverá no mundo nada de irredutivelmente moral – o “ser bom” ou o “ser certo” não é uma propriedade peculiar e irredutível de determinadas ações, mas é, antes, uma propriedade que pode ser analisada ou explicada por meio de outras, não morais. É por isso que os problemas de “estranheza metafísica” são afastados – se o vocabulário moral é apenas uma outra forma de nos referirmos a factos naturais, então a questão de saber que tipo de factos teriam de ser os factos morais (para poderem ter lugar nesse mundo natural), ou como poderíamos conhecê-los, ou como se relacionariam com os factos naturais de que de algum modo dependeriam, perderia a pertinência. Avaliar uma dada ação como sendo boa, por exemplo, consistiria apenas em afirmar que essa ação tem uma determinada propriedade natural, o que pode ser corroborado empiricamente. Há vários candidatos a propriedades naturais que poderiam ser identificadas com a propriedade de ser bom: a maximização do prazer, a satisfação de desejos, a propriedade de conduzir à felicidade do maior número de pessoas.

Qualquer proposta naturalista, no entanto, tem de enfrentar um argumento famoso na história da meta-ética, proposto por G. E. Moore (1903), o Argumento da Questão em Aberto, por meio do qual se pretendia provar que não é possível definir os termos morais por meio de termos não-morais (ou naturais – daí que as tentativas de o fazer incorram na chamada falácia naturalista), nem por quaisquer outros (pode dizer-se que coisas são boas, mas não pode definir-se o que é o bom, porque esta é uma noção simples que denota uma propriedade irredutível). O argumento é o seguinte: seja qual for a definição de bom que apresentemos é sempre possível perguntar se essa outra coisa por meio da qual definimos o “bom” é, de facto, boa. Essa é sempre uma questão que permanece em aberto. Se partirmos da definição de acordo com a qual “bom” significa “conduz à felicidade do maior número de pessoas”, é sempre possível questionarmos se algo que conduz à felicidade do maior número de pessoas é bom – e se é possível, é porque não é uma boa definição. Se não é contraditório dizer que há coisas que conduzem à felicidade do maior número de pessoas que não são boas, então é porque “X é bom” não é equivalente a “X conduz à felicidade do maior número de pessoas”. 

Contemporaneamente, deixou de se conceber este argumento como um argumento contra a identidade de propriedades – mesmo que não seja possível definir os termos morais por meio de termos não-morais (que haja, digamos, uma irredutibilidade definicional), isso não significa necessariamente que não seja possível identificar propriedades morais com propriedades não-morais. Lá porque dois termos não são sinónimos não quer dizer que não possam identificar a mesma propriedade. Afinal, é verdade que “água” não significa “H2O” (e podemos perfeitamente conceber a possibilidade de a água não ser H2O), e portanto faz perfeito sentido colocar a questão em aberto a que Moore aludia: é a água aquela substância cuja estrutura molecular é composta por dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio? Mas ainda que faça todo o sentido a pergunta, não deixa de ser um facto que os dois termos referem a mesma propriedade. O problema aqui em consideração é que para Moore uma definição, a ser verdadeira, teria de ser analítica, mas depois de Kripke ficou claro que afirmações que expressam identidades não têm necessariamente de ser analíticas; podem também ser sintéticas (não se descobrem pela mera análise dos significados, mas descobrem-se de modo empírico, fazendo ciência). Porque não se pode dar o caso de o mesmo se passar no caso dos termos e propriedades morais?  Para provar o naturalismo ético não seria necessário encontrar termos naturais que sejam sinónimos dos termos morais, basta conseguir mostrar, por meio do desenvolvimento da ética normativa ou por meio da investigação científica, que o bom se identifica, por exemplo, com o que conduz à felicidade do maior número de pessoas.

No entanto, mesmo os que afirmam que o problema de Moore já não constitui um problema (não fere de morte as análises naturalistas), concedem ainda assim que a intuição para a qual ele aponta (a de que as análises naturalistas parecem deixar algo de fora) tem razão de ser. Nomeadamente, aquele aspecto já aludido supra – a prescritividade dos conceitos morais ou a ideia de que existe uma ligação conceptual forte entre as avaliações morais e a orientação para a ação. É que nenhuma propriedade natural parece poder ter em si inscrita essa força normativa. Dizer que “bom” ou “certo” corresponde a um determinado conceito puramente descritivo que refere uma determinada propriedade natural parece não dizer nada sobre se as coisas que detêm essa propriedade são recomendáveis e devem ser seguidas; no entanto, dizer que alguma coisa é boa ou certa é precisamente dizer que ela é recomendável, e que deve ser seguida. Portanto, a “falácia” em questão não será propriamente um erro lógico, mas passa antes pela dificuldade que podemos encontrar na tentativa de identificar uma propriedade moral (como a propriedade de ser bom ou de ser certo) com uma propriedade que não parece implicar nenhuma relação especial com o que deve ser feito, que não tem o mesmo alcance normativo ou prescritivo.

3. O problema da motivação para a ação

Do que foi dito até agora facilmente se depreende que um dos principais nós górdios da discussão meta-ética diz respeito à aparente impossibilidade de conjugação destas 3 teses:

  1. O realismo moral – a ideia de que o discurso moral pode ser um discurso objetivo, sujeito a condições de correção – só se sustenta se os juízos morais expressarem crenças que podem por vezes ser verdadeiras, quando corretamente captam a realidade dos factos.
  2.  Uma das características essenciais dos juízos morais é que estes são intrinsecamente motivantes – há uma ligação necessária entre aceitar um certo juízo moral, ver um determinado curso de ação como recomendável, e estar motivado para agir em conformidade.
  3. As crenças por si só não são intrinsecamente motivantes.

A primeira tese comprometer-nos-ia com o cognitivismo e permite assegurar a objetividade do domínio moral – há respostas corretas para os problemas morais, e há respostas corretas porque há factos morais objetivos que os juízos morais corretamente capturam, quando verdadeiros; esta é a tese que as propostas anti-realistas optam por deixar cair. A segunda tese refere-se ao carácter prático dos juízos morais, envolve a ideia de que estes serão pelo menos em princípio motivantes, e designa-se como internalismo motivacional. Há uma ligação que não parece ténue entre o facto de avaliarmos algo como moralmente bom ou correto e a ideia de que devemos agir num determinado sentido. Será difícil negar que os juízos morais, como outro tipo de juízos normativos, têm uma força particular sobre nós, de tal maneira que consideraremos no mínimo estranho o comportamento de alguém que de uma forma reiterada não se mostre impelido a agir de acordo com as suas avaliações morais; particularmente, sentir-nos-emos legitimados a supor que essa avaliação não é genuína. Mas é dificil, como vimos, para qualquer proposta realista, explicar esse carácter prático dos juízos morais, ou essa força normativa, pois como é que o reconhecimento de um facto acerca do mundo poderia, só por si, compelir-nos a agir num certo sentido? Particularmente se tivermos em consideração a terceira tese, humeana, de acordo com a qual as crenças, por si só, não motivam. O problema assume, então, a seguinte forma: se alguém acredita sinceramente que uma dada ação é a correta, então ele deve estar de algum modo motivado a agir de acordo com essa crença. No entanto, se seguirmos o modelo humeano de acordo com o qual crenças e desejos são estados mentais distintos, crenças por si só não motivam, mas precisam da adição do desejo, ou a ideia relacionada de que a razão é a “escrava das paixões” – por si só, é motivacionalmente inerte, não nos leva a fazer coisas – como é então possível defender uma tese cognitivista a propósito da moral, isto é, supor que as asserções morais exprimem juízos que podem ser considerados verdadeiros ou falsos?

Uma solução, como vimos, é deixar cair a pretensão realista/objetivista. Outra solução ainda é deixar cair o pressuposto internalista; muitos defensores do realismo moral vão nessa direção (cf., por exemplo, Shafer-Landau 2003; Brink 1989). Deixar cair o pressuposto internalista é defender, por exemplo, que a figura do amoral não é conceptualmente estranha ou impossível: alguém que reconhece certos juízos morais como corretos e portanto avalia um determinado curso de ação como recomendável, mas que não se sente de nenhum modo compelido a fazer o que julga ser o correto. A figura do amoral serviria de contra-exemplo a uma posição internalista na medida em que mostraria que a ligação entre aceitar um juízo moral e estar motivado para agir é uma relação contingente. Por outro lado, seria possível argumentar que o facto dessa figura do amoral ser uma figura excepcional, que clama por explicação ou interpretação, é precisamente o que mostra que há, normalmente, uma relação intrínseca, nos casos típicos, entre avaliação moral e motivação para a ação; o amoral seria a excepção que confirma a regra de acordo com a qual essa ligação existe (cf., por exemplo, Smith 1994; Blackburn 2001). Outra solução ainda é deixar cair a tese humeana, argumentando que certas crenças, nomeadamente as crenças morais, podem, por si só, motivar para a ação. Essa posição anda normalmente a par com uma outra: a ideia de acordo com a qual a racionalidade não tem um poder meramente instrumental. Pensar que a presença do desejo é sempre obrigatória é aquilo a que filósofos morais como Thomas Nagel (1970) ou John McDowell (1998) se referem como dogma humeano, ao qual não temos de nos ater para pensar na natureza da motivação da ação. Ambos acreditam ser possível que determinadas considerações sejam racionalmente motivadoras, mesmo que nenhum desejo as anteceda (o desejo poderá ser a consequência do reconhecimento de uma razão para agir, e não aquilo que explica a existência dessa razão). É neste longo debate que se insere também a discussão de Bernard Williams acerca de saber o que significa ter uma razão para agir; Williams (1979) sustenta, pelo seu lado, que só se pode dizer de alguém que tem uma razão para agir se for possível estabelecer alguma ligação entre essa razão e o conjunto motivacional de base do sujeito (que não deve ser entendido de forma simplista, como sendo composto apenas por desejos; dele fazem parte toda a sorte de preocupações, cuidados, interesses, lealdades, projetos ou compromissos do agente). As nossas razões para agir necessariamente estariam conectadas a qualquer um desses itens – o que é uma outra forma de dizer que só existem razões internas, e não externas.

4. As teorias da razão prática

O problema da motivação da ação é um problema também para as posições meta-éticas que se designam, de modo lato, como teorias da razão prática. As teorias da razão prática, herdeiras de Kant, advogam uma estrita separação entre os usos da razão prática e da razão teórica (o que corresponde a uma assunção da distinção entre facto e valor, entre os domínios descritivo e normativo), e por isso mesmo reclamam para a ética um tipo de objetividade diferente da que é possível reclamar para os juízos empíricos. De acordo com tais perspetivas, não existem nem teriam de existir factos morais que sirvam de referente para os juízos morais, e a própria questão de saber se os valores existem “no mundo” não faz qualquer sentido, uma vez que os conceitos normativos constituiriam não modos de designar coisas no mundo mas antes nomes que referem soluções para os problemas práticos que seres racionais auto-conscientes enfrentam. Para Korsgaard (1996), a própria ideia de acordo com a qual todo e qualquer conceito cognitivamente significativo tem como única função descrever a realidade é em si um resquício de um empirismo verificacionista de que a filosofia analítica não se livrou por completo. Do seu ponto de vista, o juízo moral constitui a conclusão de um raciocínio prático, e a conclusão de um raciocínio prático não corresponde nem à descrição de algum facto acerca do mundo nem à expressão de um sentimento ou estado não-cognitivo. E se a boa ação moral se identifica com a ação racional, com o que é racional fazer-se, então não precisamos postular a existência de especiais propriedades éticas no mundo nem de especiais faculdades mentais para poder fundamentar a ética; não precisamos pressupor um domínio de factos morais objetivos, mas apenas mostrar que há princípios da razão prática que são constitutivos da própria agência racional. Os requerimentos morais não precisariam de algum tipo de fundação ontológica, mas apenas de uma fundamentação racional.

Em suma, as diferentes teorias da razão prática (alguns autores, como Nagel (1986), preferem falar de “realismo normativo”, outros, como Korsgaard (2003) ou Rawls (1980), preferem a designação de “construtivismo”), ainda que com nuances entre si, pretendem de uma maneira geral ancorar a objetividade da ética somente nas exigências ou normas universais da razão. As razões morais serão, por definição, gerais, e estarão disponíveis de igual modo para todos os seres racionais na medida em que é possível saber, por meio de um procedimento puramente racional, o que é a coisa a fazer, de tal forma que qualquer ser racional estaria obrigado a agir desse modo, independentemente de quais sejam as suas motivações subjetivas. Esta proposta é atacada por duas direções distintas: é criticada pelos partidários do realismo substantivo, por não garantir mais do que uma forma de intersubjetividade (Shafer-Landau (2003), por exemplo, defende que um realismo moral teria de assegurar que o facto de alguma coisa ser moralmente correta ou errada não pode depender do que seres racionais são capazes de conceber como errado; a realidade moral teria de ser conceptualmente anterior e existencialmente independente de qualquer ratificação, seja ela de uma comunidade actual ou ideal de agentes racionais); e é simultaneamente criticada pelos teóricos das razões internas, para quem as tentativas de fundamentar a moralidade pela via da racionalidade falham porque não é verdade que todos os agentes racionais, seguindo apenas as normas da racionalidade, chegariam à mesma conclusão acerca do que se deve fazer.

Pensemos, por exemplo, na ideia de acordo com a qual qualquer agente – capaz de se reconhecer como um agente entre outros – tem uma razão para respeitar os interesses dos outros. Grande parte do esforço teórico daqueles que pretendem fundamentar racionalmente a ética passa por mostrar que um princípio deste tipo pode ser derivado racionalmente (independentemente de quais sejam as motivações ou interesses do agente): se eu acredito que X é uma pessoa como eu, e acredito que X está a sofrer, e acredito ainda que possa aliviar o sofrimento de X fazendo Y, então isso é uma razão para fazer Y. Haverá necessariamente um caminho deliberativo capaz de ser traçado entre o conjunto motivacional de qualquer agente racional e o princípio de que devemos respeitar os interesses dos outros. Um agente racional será precisamente aquele que é capaz de ver esse princípio (cf. Korsgaard 1986).

Os que duvidam que seja possível fazer assentar o edifício ético em bases puramente racionais duvidam que se possam fazer essas afirmações de carácter geral acerca dos caminhos deliberativos que qualquer agente racional pode traçar. Mesmo tomando o processo de deliberação e de reflexão racional num sentido bastante liberal e indeterminado (não o reduzindo a um puro raciocínio meios-fins), não será possível afirmar que está disponível para qualquer agente racional, qualquer que seja o conteúdo do conjunto motivacional que o caracteriza, um caminho deliberativo que poderá conduzi-lo à conclusão de acordo com a qual ele tem uma razão para respeitar os interesses dos outros. Ou seja, não é verdade que qualquer agente racional (isto é, alguém que seja capaz de pensar em termos de razões para agir, que seja capaz de aplicar as regras de consistência e universalidade) terá necessariamente uma razão para respeitar os interesses dos outros, apenas porque é racional.

Seria este cepticismo acerca das potencialidades da razão que impediria a fundamentação racional da ética. Alguns autores sustentam que esse cepticismo acerca da razão só se entende se se partir de uma concepção muito pobre do que é a racionalidade, uma concepção meramente instrumental (cf., por exemplo, Putnam 2002). Mas pode não ser esse exactamente o caso – há quem sustente também que, ainda que a razão possa orientar-nos no domínio prático, ela não é suficiente, na medida em que ser racional não basta; é preciso além disso ser o tipo certo de pessoa (este é o caminho defendido pelos defensores da chamada ética das virtudes). É verdade que podemos usar a razão para pensar acerca de fins, mas o ponto fulcral a considerar é que, se não formos suficientemente imaginativos, se não tivermos determinadas preocupações, se não formos suficientemente sensíveis à saliência moral das ocasiões, nem suficientemente bem formados, nunca reconheceremos determinadas razões para agir, como as razões morais.

Bibliografia

Ayer, A. J. (1936), Linguagem, Verdade e Lógica, trad. Anabela Mirante, Editorial Presença, Lisboa (1991).

Blackburn, S. (1993), Essays in Quasi-Realism, Oxford University Press, Oxford.

Blackburn, S. (1996), “How to Be an Ethical Antirealist”, in S. Darwall, A. Gibbard & P. Railton (eds.), Moral Discourse and Practice: Some Philosophical Approaches, Oxford University Press, Oxford.

Blackburn, S. (2001), Ruling Passions: A Theory of Practical Reasoning, Clarendon Press, New York.

Boyd, R. (1988), “How to Be a Moral Realist,” in G. Sayre-McCord (ed.), Essays on Moral Realism, Cornell University Press, Ithaca, pp. 181–228.

Brink, D. (1989), Moral Realism and the Foundations of Ethics, Cambridge University Press, Cambridge.

Copp, D. (2003), “Why naturalism?”, Ethical Theory and Moral Practice 6, pp. 179-200.

D’Arms, J. (2005), “Relationality, Relativism, and Realism About Moral Value”, Philosophical Studies 126 (3), pp. 433–448.

Darwall, S. (1990), “Autonomist internalism and the justification of morals”, Noûs 24, pp. 257-268.

Dworkin, R. (1996), “Objectivity and Truth: You’d Better Believe It”, Philosophy and Public Affairs 25 (2), pp. 87–139.

Fisher, A. & Kirchin, S. (eds.) (2006), Arguing About Metaethics, Routledge, New York.

Foot, P. (2003), Natural Goodness, Oxford University Press, Oxford.

Harman, G. (1977), The Nature of Morality, Oxford University Press, New York.

Hume, D. (1738), Tratado Da Natureza Humana, traduzido por Serafim da Silva Pontes, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002.

Hume, D. (1998), An Enquiry Concerning the Principles of Morals, ed. T. Beauchamp, Oxford University Press, Oxford.

Jackson, F. (1998), From Metaphysics to Ethics: A Defence of Conceptual Analysis, Clarendon Press, Oxford.

Jackson, F. & Pettit, P. (1998), “A Problem for Expressivism”, Analysis 58 (4), pp. 239–251.

Kant, I. (1785), Fundamentação da Metafísica dos Costumes, ed. Pedro Galvão, trad. Pedro Quintela, Edições 70, Lisboa (2009).

Korsgaard, C. (1986), “Skepticism About Practical Reason”, Journal of Philosophy 83 (1), pp. 5–25.

Korsgaard, C. (1996), The Sources of Normativity, ed. Onora O’Neill, Cambridge University Press, Cambridge.

Korsgaard, C. (2003), “Realism and Constructivism in Twentieth-Century Moral Philosophy”, Journal of Philosophical Research 28(Supplement), pp. 99–122.

Leiter, B. (ed.) (2000), Objectivity in Law and Morals, Cambridge University Press, New York.

Mackie, J. L. (1977), Ethics: Inventing Right and Wrong, Penguin Books, London.

McDowell, J. (1998), Mind, Value, and Reality, Harvard University Press, Cambridge, Mass.

McDowell, J. (2006), “Non-Cognitivism and Rule-Following”, in A. Fisher & S. Kirchin (eds.), Arguing About Metaethics, Routledge.

Moore, G. E. (1903), Principia Ethica, Cambridge University Press, Cambridge.

Nagel, T. (1970), The Possibility of Altruism, Clarendon Press, Oxford.

Nagel, T (1986), The View From Nowhere, Oxford University Press, New York.

Nichols, S. (2004), Sentimental Rules: On the Natural Foundations of Moral Judgment, Oxford University Press, Oxford.

Putnam, H. (2002), The Collapse of the Fact/Value Dichotomy and Other Essays, Harvard University Press, Cambridge, MA.

Putnam, H. (2005), Ethics without Ontology, Harvard University Press, Cambridge, MA.

Railton, P. (1986), “Moral Realism”, Philosophical Review 95, pp. 163–207.

Rawls, J. (1980), “Kantian Constructivism in Moral Theory”, Journal of Philosophy 77 (9), pp. 515–572.

Sayre-McCord, G. (ed.) (1988), Essays on Moral Realism, Cornell University Press, Ithaca.

Shafer-Landau, R. (2003), Moral Realism: A Defense, Oxford University Press, Oxford.

Singer, P. (ed.) (1993), A Companion to ethics, Blackwell Companions to Philosophy, Blackwell.

Smith, M. (1994), The Moral Problem, Blackwell, Oxford.

Williams, B. (1979), “Internal and External Reasons”, in S. Darwall, A. Gibbard & P. Railton (eds.) (1996), Moral Discourse and Practice: Some Philosophical Approaches, Oxford University Press, Oxford.

Williams, B. (1985), Ethics and the Limits of Philosophy, Fontana, London.

Wittgenstein, L. (1929), Conferência sobre Ética, tradução de António Marques, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa (2017).


Outros artigos

Ação; Bem; Emotivismo; Realismo Moral; Relativismo


Como citar este artigo

Cadilha, S. “Meta-Ética”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2019), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/meta-etica>.


Descarregar Versão PDF


DOI: http://doi.org/10.34619/tmv4-7t51


Publicado em: 10 de Abril de 2019


Susana Cadilha

FCSH, Universidade Nova de Lisboa

<susanacadilha@gmail.com>