REALISMO / ANTI-REALISMO MORAL
No que se segue, procurarei delinear os principais argumentos avançados pelas mais importantes teorias realistas e anti-realistas acerca do valor moral, assim como as principais críticas que lhes são endereçadas. O que separa o realismo do anti-realismo moral é, fundamentalmente, a respetiva posição acerca da seguinte questão: existem factos morais objetivos? Esta é uma discussão que se insere no âmbito da meta-ética, que pode ser considerada uma sub-disciplina da chamada ética filosófica, a par da ética normativa. Se a ética normativa pretende dar resposta a questões normativas ou avaliativas – o que é que devemos fazer? Qual é o princípio da ação correta? Como se define o bom ou o valioso, do ponto de vista moral? –, a meta-ética pretende analisar o fundamento dessas respostas, ou seja, coloca questões acerca da natureza dos valores ou dos factos morais e acerca do estatuto dos juízos morais. Essas questões são de índole variada. Perante uma qualquer avaliação moral de primeira ordem, como por exemplo, “Torturar animais é moralmente errado”, colocam-se ainda problemas que podem ser de carácter:
i) metafísico: o que tem de haver no mundo para que seja verdadeira a afirmação de que ‘Torturar animais é moralmente errado’? Estamos a apontar para factos objetivos, acerca do mundo, para factos racionais ou normativos, acerca do que as pessoas têm razões para pensar, ou para factos subjetivos, acerca das atitudes e disposições dos indivíduos?;
ii) epistemológico: como é que sabemos que ‘Torturar animais é moralmente errado’? E como é que podemos justificar essa avaliação? Por meio de argumentos? Apelando a algo como uma intuição apriorística? Por meio da investigação empírica?;
iii) semântico: o que significa dizer que ‘Torturar animais é moralmente errado’? Estamos a referir-nos a uma propriedade que essa ação apresenta? Os juízos morais servem para descrever a realidade, ou têm uma outra função semântica?;
iv) psicológico: acreditar que ‘Torturar animais é moralmente errado’ implica o quê do ponto de vista da motivação para a ação? Os juízos morais são intrínseca e necessariamente motivantes?
Como veremos adiante, é por relação a todas estas questões que a discussão entre realismo e anti-realismo moral se define. Em seguida, procurarei discernir o que separa as diferentes formas de realismo moral substantivo ou metafísico (com destaque para o realismo naturalista e não-naturalista), das propostas anti-realistas (com destaque para a teoria do erro e o não-cognitivismo), e de algumas propostas realistas não-metafísicas (com destaque para as teorias da razão prática e as teorias da sensibilidade).
1. Existem factos morais objectivos?
A principal questão a que se pretende dar resposta é então a de saber se podem existir coisas como factos morais objetivos. Genericamente, o realista moral defende duas ideias principais, a saber: i) existem factos e propriedades morais objetivos; e ii) os juízos morais descrevem ou apontam para esses factos morais, e são por isso verdadeiros ou falsos, consoante descrevam a realidade moral corretamente, ou não. O realismo moral apresenta como sua principal vantagem argumentativa o facto de levar a moralidade a sério: isto é, se queremos acreditar que há de facto uma diferença entre estar moralmente certo ou errado, que há respostas objetivamente certas e erradas para os problemas morais, então teremos que acreditar que existem factos morais objetivos, independentemente do que possam ser as nossas opiniões. Recuperando o mesmo exemplo, torturar animais é moralmente errado não porque partilhamos a convicção de que torturar animais é moralmente errado, mas temos essa convicção porque torturar animais tem ou apresenta a propriedade objetiva de ser moralmente errado. Trata-se de defender que existem respostas certas e erradas para os problemas morais precisamente porque existem factos morais.[1]
Claro que uma das primeiras noções a clarificar é a noção de objetividade. O que distingue o realismo moral substantivo ou metafísico é a ideia de acordo com a qual os factos e princípios morais têm um carácter objetivo, com isto querendo dizer que a existência dos factos morais e a verdade dos princípios morais (que determinam o que pode contar como um facto moral) são independentes da nossa ratificação e reconhecimento, i.e., do que qualquer indivíduo, ou comunidade de indivíduos, pensa acerca deles, quer seja de uma perspetiva atual ou hipotética/idealizada. De facto, no modo como correntemente nos referimos a coisas como obrigações ou deveres morais, parecemos apelar a essa objetividade e independência (por relação às convicções do avaliador), pois se assumimos que alguém tem o dever ou a obrigação moral de fazer alguma coisa, consideramos que essa obrigação se aplica quer essa pessoa o reconheça ou não; na verdade, consideramos que essa obrigação se aplica independentemente de qualquer pessoa a reconhecer. E a aposta do realismo é que as coisas são de facto como parecem – a propriedade de alguma coisa ser moralmente errada é tão objetiva como a propriedade de alguma coisa ser quadrada, no sentido em que não depende das reações, atitudes ou crenças do sujeito. Os principais argumentos a favor do realismo moral têm então na sua base uma espécie de inferência a favor da melhor explicação. É que essa autoridade e inescapabilidade da moral, amplamente reconhecidas e patentes até na forma como na linguagem comum nos referimos ao domínio moral, só têm cabimento se aderirmos ao realismo moral. Na nossa prática corrente enquanto avaliadores morais, não nos limitamos a pensar que a nossa opinião é uma entre muitas, ou que neste canto do globo é essa a prática que prevalece, mas acreditamos que há uma resposta certa para uma questão moral – e parece que a autoridade que o discurso moral exerce não se compreenderia se fosse de outro modo, ou seja, a melhor explicação para todos estes pressupostos, nos quais assentam as nossas práticas e a nossa linguagem, é apresentada pelo realismo moral.[2]
2. O problema moral e as propostas anti-realistas
2.1. A Teoria do Erro
O grande problema que se coloca a uma proposta realista é o seguinte: como é que o reconhecimento de um facto acerca do mundo pode, só por si, racionalmente compelir-nos a agir num certo sentido? Se a tese da objetividade se sustenta, há respostas corretas para os problemas morais que são totalmente determinadas pelas circunstâncias em que o agente se encontra, cabe a este apenas reconhecer o facto moral pertinente – isto é, há algo que é a coisa a fazer, independentemente de quais possam ser as convicções, os desejos ou as motivações pessoais de cada um. No entanto, como é que o mero reconhecimento de um facto pode levar-nos a pensar que temos razões necessárias para agir num certo sentido (pois é esse sentido de inescapabilidade e de incondicionalidade que o dever moral encerra), e como é que o reconhecimento desse facto pode, por si só, implicar que nos sintamos motivados a agir num certo sentido? O que precisamos, para fazer sentido do pensamento moral, é que cheguemos a reconhecer um tipo de facto acerca do mundo cujo reconhecimento tem, por si só, um impacto necessário sobre as nossas razões para agir e sobre os nossos desejos.
Ora, é esse tipo de factos que os chamados anti-realistas duvidam que possam ter cabimento, ou, nas palavras de J.L.Mackie, que possam fazer parte do “tecido do mundo”. Com efeito, um dos argumentos a que Mackie recorre para provar o seu ponto é o chamado argumento da esquisitice (argument from queerness) – esquisitice ou bizarria metafísica, note-se, pois para apelarmos a factos morais objetivos teríamos que admitir a existência de propriedades muito bizarras do ponto de vista metafísico, “inteiramente diferentes de tudo o resto no universo” (Mackie 1977: 38), na medida em que estaríamos a referir-nos a propriedades intrinsecamente prescritivas. A palavra-chave aqui é ‘intrinsecamente’, pois o que se espera é que o mero facto de descobrirmos tais propriedades dir-nos-ia o que deve ser feito, independentemente do que possam ser as nossas motivações ou convicções. A existirem factos morais objetivos, teríamos de supor a existência de uma ou várias propriedades que tivessem em si inscritas a propriedade objetiva e irrecusável de ‘dever ser seguido’. Para além disso, ter-se-ia também de supor a existência de uma faculdade especial, que nos permitisse aceder a essas propriedades; uma qualquer ‘intuição’ moral que tornasse possível a apreensão dos factos morais, em tudo diferente dos restantes sentidos por meio dos quais apreendemos o mundo.[3]
É então porque o discurso moral envolve a pressuposição de que existem esses factos ou propriedades objetivamente prescritivos que Mackie considera que tanto o discurso moral corrente internalizado por todos nós, como toda a filosofia moral ocidental, assentam numa metafísica profundamente errada. É verdade que a linguagem moral tem uma vocação cognitivista e objetivista, mas, uma vez que o mundo não pode incluir coisas como factos ou propriedades morais objetivos, o que temos é um erro ou uma ilusão massivos, i.e., todos os juízos morais são falsos (daí que a sua posição seja denominada como Teoria do Erro), e a moral é uma espécie de fábula útil e bem urdida. Ou seja, os juízos morais expressam crenças, têm conteúdo cognitivo, pretendem descrever a realidade e portanto têm valor de verdade, mas o que acontece é que não há nada no mundo que possa tornar verdadeiro qualquer juízo moral.
O problema que se aponta ao realismo moral é então o de não conseguir explicar como é que propriedades objetivas – que pertencem ao mundo e são o que são independentemente do que pensam as criaturas que avaliam o mundo – podem ser diretivas, dizer-nos o que fazer e impelir-nos para a acção. Por outras palavras, para que nos sintamos impelidos a agir num certo sentido, é preciso adicionar o ingrediente motivacional – os desejos ou o facto de o agente se importar com alguma coisa; o mero reconhecimento de factos objetivos não faz isso. Mas se o mero reconhecimento de factos ou propriedades objetivas não obriga a agir em sentido algum, então não podemos acreditar na existência de propriedades morais objetivas, pois elas encerram essa ideia de que nelas está inscrita a característica de ‘dever ser seguido’, necessariamente. É de salientar que, utilizando a terminologia de Kant, é apenas a validade dos imperativos categóricos que está a ser colocada em causa, não a validade dos imperativos hipotéticos. Os anti-realistas, obviamente, aceitam que certas acções devem ser levadas a cabo, mas apenas num sentido puramente instrumental ou condicional – se lhe juntarmos as nossas motivações e desejos e interesses. Ou seja, há factos – descritivos, que pertencem ao mundo – que podem ter interesse do ponto de vista prático, mas apenas contingentemente. É importante, por exemplo, do ponto de vista prático, ter conhecimento do facto de que fumar é prejudical para a saúde, caso eu esteja interessada em conservar a minha saúde. No entanto, os factos morais – como nos mostrou Kant – não são entendidos dessa forma, mas sim como intrínseca e necessariamente prescritivos, na medida em que é suposto que o mero facto de os conhecer nos diga o que fazer. E o que não se percebe é que tipo de factos poderiam ser esses, como poderia o mundo albergá-los. Com efeito, é essa ideia de prescritividade que causa especiais problemas ao realismo moral, por comparação com teses realistas acerca de outro tipo de entidades problemáticas (entidades matemáticas, por exemplo). É que nenhuma outra entidade acarreta esse carácter de imperatividade, essa exigência de ter-que-ser-seguido-necessariamente; o que faz dos factos morais factos especiais – demasiado bizarros, diria Mackie – é precisamente a característica de eles nos exigirem qualquer coisa do ponto de vista prático. Subjacente à ideia de que algo é moralmente errado está a ideia de que é condenável, de que não se deve cumprir – e essa não é uma restrição limitada, que valerá apenas para mim, mas para qualquer pessoa na mesma situação, e tão pouco dependerá da minha vontade em segui-la. É esse carácter intrínseca e necessariamente prescritivo que coloca problemas específicos quando queremos pensar sobre a natureza do pensamento moral.
2.2. O Não-cognitivismo
A outra proposta anti-realista – o não-cognitivismo – recorre a uma outra explicação para dar conta do carácter prático e prescritivo dos juízos morais. Essa proposta parte também do princípio de acordo com o qual o realismo moral nos compromete com uma visão do mundo algo bizarra (algo como um realismo platónico), mas considera que a solução não é defender que todos os juízos morais são falsos (porque se reportariam a propriedades que não existem), mas sim que nem sequer são juízos (o seu objetivo não é descrever o mundo, mas influenciá-lo). Os termos morais simplesmente não têm como função referir-se a propriedade alguma; a sua função semântica não é descrever o mundo; portanto, as avaliações morais não expressam estados mentais com conteúdo cognitivo, como crenças (que podem ser consideradas verdadeiras ou falsas), mas antes atitudes não-cognitivas como desejos, preferências ou emoções. A aposta do não-cognitivismo passa precisamente por mostrar, por um lado, que ainda que a linguagem seja aparentemente realista, é possível explicar o que fazemos sem pressupor nenhum domínio de factos morais, e, para além disso, é mesmo possível tornar inteligível o discurso moral sem supor que a sua função é descrever propriedades objetivas que pertencem ao mundo.
Assim, de acordo com esta perspetiva, não é necessário supor que o mundo contém as tais problemáticas propriedades intrinsecamente prescritivas, uma vez que os juízos morais não expressam crenças acerca do mundo, mas apenas as atitudes ou desejos do agente – portanto, por meio das nossas avaliações morais, não estamos a apontar para nada no mundo que detenha poderes prescritivos especiais, mas apenas a projetar no mundo as nossas respostas, reações ou atitudes subjetivas perante aquilo que acontece. A leitura não-cognitivista consegue acomodar perfeitamente o facto de as asserções ou avaliações morais deterem uma particular força sobre nós, no sentido de prescreverem um certo caminho e incitarem à acção, na medida em que os desejos ou as pró-atitudes que as elocuções morais expressam são, por natureza, estados mentais incitadores à acção. Portanto, o problema de saber como poderíamos ter juízos acerca de uma realidade moral objetiva que fossem intrinsecamente motivantes, dado que crenças por si só não são intrinsecamente motivantes, dissipar-se-ia, se adoptada a perspetiva não-cognitivista.[4]
A solução não-cognitivista assumiu diferentes versões ao longo da evolução da disciplina da meta-ética, desde o emotivismo de Ayer dos inícios do século XX (numa altura em que a tarefa da meta-ética se confundia com a mera análise linguística), até propostas mais sofisticadas como o projetivismo ou quasi-realismo de Simon Blackburn (1996), para quem a solução projetivista é a única forma de resolver os problemas com que o realismo moral se defronta, sem ser preciso assumir que todos os juízos morais são falsos (pois qual seria a utilidade do discurso moral, nesse caso?). O seu objetivo é mostrar que o discurso moral não envolve qualquer erro; pelo contrário, dada a tese projetivista, é natural que tratemos as asserções morais como se elas fossem juízos comuns, sujeitos às mesmas condições.
Os críticos desta proposta, no entanto, asseveram que nenhuma das suas versões mais sofisticadas consegue dirimir aquele que é o principal problema do não-cognitivismo – ao fazer da ética expressão de atitudes subjetivas, introduz-se um elemento de arbitrariedade e discricionariedade que não permite fazer da discussão ética uma discussão assente em bases racionais, desde logo porque o elemento essencial de uma avaliação moral seria algo a propósito do agente (as suas atitudes subjetivas) e não a propósito da forma como o mundo é. Parece haver alguma coisa de errado numa análise que vê como elemento essencial de uma avaliação moral não aquele aspeto do mundo que faz com que o rejeitemos ou apreciemos, mas o facto de o indivíduo ter uma determinada atitude ou encontrar-se num determinado estado conativo. É que nada nos garante, nesse caso, que exista alguma ligação lógica entre a avaliação moral a que se chega e os acontecimentos factuais que dão origem a essa avaliação, e nesse caso a ética parece perder inteligibilidade e razoabilidade (cf. por exemplo Foot 2003).
3. Realismo naturalista e seus críticos
Uma forma de tentar contornar o problema da ‘bizarria metafísica’ é mostrar que as propriedades morais não teriam nada de especial ou sui generis, uma vez que estas poderão ser identificadas com (ou mesmo reduzidas a) propriedades naturais. As propriedades naturais são normalmente entendidas como aquelas que têm eficácia causal e que podem ser descobertas por meio de investigação empírica. De que maneira se salva o realismo, se se optar por um realismo naturalista? Assumindo que as propriedades e os factos morais existem, e portanto ao dizer que ‘torturar animais é errado’ estamos a fazer uma descrição correta da realidade. Só que essas propriedades são passíveis de ser descritas em termos puramente naturais (apelando a características biológicas ou psicológicas do ser humano). Ou seja, o método para identificar e conhecer os factos e as verdades morais não consiste na reflexão a priori ou na pura intuição, mas antes numa análise empírica do mundo em que vivemos e da natureza biológica, psíquica e social dos agentes. Portanto, não haverá no mundo nada de irredutivelmente moral – o ‘ser bom’ ou o ‘ser certo’ não é uma propriedade peculiar e irredutível de determinadas ações, mas é, antes, uma propriedade que pode ser analisada ou explicada por meio de outras, não morais. Há vários candidatos a propriedades naturais que poderiam ser identificadas com a propriedade de ser (moralmente) bom: a maximização do prazer, a satisfação de desejos de primeira ou segunda ordem, a propriedade de conduzir à felicidade do maior número de pessoas, a propriedade de promover o bem-estar dos indivíduos ou até o sucesso da espécie. Philippa Foot (2003), Peter Railton (1986) ou Frank Jackson (1998), entre outros, são alguns defensores de propostas naturalistas, ainda que bastante diferentes entre si. O realismo naturalista parte de alguns pressupostos, que podemos considerar mais ou menos problemáticos: i) supõe que é possível, partindo da constituição natural (biológica, psicológica, social) dos seres humanos, identificar o que seriam os seus interesses objetivos, ou seja, identificar o que é, para um ser humano, a realização do seu bem-estar e a satisfação das suas necessidades, e ii) supõe, além disso, que afirmar que alguma coisa é boa ou moralmente certa não é mais do que afirmar que ela tem a propriedade de contribuir para essa realização.
Como é sabido, qualquer proposta naturalista terá de enfrentar o célebre Argumento da Questão em Aberto, avançado por G.E.Moore (1903). Por meio desse argumento, Moore pretendia provar que simplesmente não é possível definir os termos morais por meio de termos não-morais (pode dizer-se que coisas são boas, mas não pode definir-se o que é o bom, porque esta é uma noção simples que denota uma propriedade irredutível). E isto porque seja qual for a definição de bom que apresentemos é sempre possível perguntar se essa outra coisa por meio da qual definimos o ‘bom’ é, de facto, boa. Essa é sempre uma questão que permanece em aberto. Se partirmos da definição de acordo com a qual ‘bom’ significa ‘conduz à felicidade do maior número de pessoas’, é sempre possível questionarmos se algo que conduz à felicidade do maior número de pessoas é bom – e se é possível, é porque não é uma boa definição. Se não é contraditório dizer que há coisas que conduzem à felicidade do maior número de pessoas que não são boas, então é porque “X é bom” não é equivalente a “X conduz à felicidade do maior número de pessoas”.
É verdade que depois de Kripke deixou de se conceber este argumento como um argumento contra a identidade de propriedades, pois mesmo que não seja possível definir os termos morais por meio de termos não-morais (que haja, digamos, uma irredutibilidade definicional), isso não significa necessariamente que não seja possível identificar propriedades morais com propriedades não-morais. Dois termos podem não ser sinónimos e ainda assim identificar a mesma propriedade. Por exemplo, o termo ‘água’ não pode ser definido como ‘H2O’ (é perfeitamente possível conceber que a água pudesse ter outra constituição química, e portanto faz sentido colocar a questão em aberto a que Moore aludia: é a água aquela substância cuja estrutura molecular é composta por dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio?). Mas mesmo que faça sentido a pergunta, não deixa de ser um facto empírico que a propriedade de ser água e a propriedade de ser H2O são uma e a mesma. O problema aqui em consideração é que para Moore uma definição, a ser verdadeira, teria de ser analítica, mas depois de Kripke ficou claro que afirmações que expressam identidades não têm necessariamente que ser analíticas; podem também ser sintéticas (não se descobrem pela mera análise dos significados, mas descobrem-se de modo empírico, fazendo ciência). Por que não se pode dar o caso de o mesmo se passar no caso dos termos e propriedades morais? Para provar o naturalismo ético não seria necessário encontrar termos naturais que sejam sinónimos dos termos morais, basta conseguir mostrar, por meio do desenvolvimento da ética normativa ou por meio da investigação científica, que o bom se identifica, por exemplo, com o que conduz à felicidade do maior número de pessoas, ou com o que conduz ao avanço da espécie.
Há no entanto uma versão de naturalismo ético – o chamado realismo de Cornell, associado a filósofos morais que trabalham nessa universidade americana, entre os quais David Brink (1989) e Richard Boyd (1988) – que repudia qualquer tipo de redução ou até mesmo de identificação entre as propriedades morais e outro tipo de propriedades, não-morais (e portanto evita o argumento de Moore). De acordo com o realismo de Cornell, não só os termos morais são irredutíveis a termos não-morais, como também as propriedades morais não são reduzíveis a outras propriedades naturais (não existe sequer uma identidade sintética). A ideia é que os factos morais são factos naturais, com poderes explicativos, mas não se identificam com quaisquer outro tipo de factos naturais. As propriedades morais não seriam propriedades metafisicamente sui generis ou bizarras, fora do domínio natural; a par de outras propriedades naturais (como as propriedades físicas, químicas ou biológicas), elas têm poderes explicativos e eficácia causal, e podem ser descobertas por meio do inquérito científico (onde se incluirá o método do equilíbrio reflexivo) – simplesmente são irredutíveis a essas outras propriedades naturais.
Essa constitui uma tentativa de manter a autonomia do domínio moral, no interior de uma perspetiva naturalista. Há, por outro lado, propostas realistas que defendem que o realismo moral não precisa de todo de se conciliar com uma visão naturalista. Os chamados realistas não-naturalistas (Shafer-Landau 2003, Parfit 2011, Scanlon 2014) consideram até que o naturalismo não salva o realismo moral, na medida em que as propriedades morais qua morais seriam extirpadas do mundo. De acordo com esta perspetiva, a ciência natural e a ética são empreendimentos teóricos com objetivos muito distintos – mas isso não tem que causar especiais problemas à ética. Os factos morais são traços ou características genuínas do mundo, mas são de um tipo diferente dos outros factos, naturais, e estão por isso fora do alcance de uma explicação científica. A ética é uma atividade normativa, que pretende impor restrições normativas sobre o que devemos fazer e não descrever a forma como o mundo natural funciona, e portanto as entidades normativas ou morais não se descobrem da mesma forma que os factos naturais. De acordo com Shafer-Landau (2003), por exemplo, o que marca a diferença entre a ciência e a ética é que a primeira não admite que as verdades científicas sejam conhecidas a priori, ao passo que as verdades éticas são apreendidas aprioristicamente. No entanto, esse afastamento por relação ao método científico não tem de transformar a ética num exercício espúrio, misterioso e confabulatório, porque a ciência não tem de ser a ‘medida de todas as coisas’ que existem.
E quanto ao ‘problema moral’ para o qual apontámos há pouco, como o resolvem estas formas de realismo? Na verdade, mesmo que admitamos que o argumento de Moore já não fere de morte as análises naturalistas, é possível ainda assim conceder que a intuição para a qual ele aponta tem razão de ser, e a intuição para a qual ele aponta prende-se precisamente com a prescritividade dos juízos morais e com a ideia de que existe uma ligação conceptual forte entre as avaliações morais e a orientação para a acção. É que nenhuma propriedade natural parece poder ter em si inscrita essa força normativa. Dizer que ‘bom’ ou ‘certo’ corresponde a um determinado conceito puramente descritivo que refere uma determinada propriedade natural parece não dizer nada sobre se as coisas que detêm essa propriedade são recomendáveis e devem ser seguidas; no entanto, dizer que alguma coisa é boa ou certa é precisamente dizer que ela é recomendável, e que deve ser seguida. E mesmo no caso das propostas naturalistas não-reducionistas, como o realismo de Cornell, a pergunta mantém-se – como é que uma propriedade natural pode implicar alguma relação especial com o que deve ser feito, pode ter poderes prescritivos?
Tanto os realistas naturalistas como os realistas não-naturalistas resolvem o chamado ‘problema moral’– explicar como é que factos objetivos acerca do mundo podem ter o poder prescritivo de nos levar a fazer coisas – abandonando o pressuposto internalista de acordo com o qual há uma ligação necessária entre aceitar um certo juízo moral, ver um determinado curso de ação como recomendável, e estar motivado para agir em conformidade, ou seja, repudiando a tese do internalismo motivacional, a ideia de que os juízos morais seriam intrínseca e necessariamente motivantes. A posição externalista advoga antes que a relação entre o juízo moral e a motivação é uma relação meramente contingente: para além do juízo moral de acordo com o qual X é a coisa certa a fazer, temos também o desejo (extrínseco) de fazer a coisa certa (o que quer que esta seja). Tendo formado o juízo moral de acordo com o qual X é a coisa certa a fazer, o desejo de a fazer tem a função de efectivar a ‘transição psicológica’ que ocorre, numa pessoa bem formada, entre o ajuizar que é correto fazer X e o querer efetivamente fazer X. Deixar cair o pressuposto internalista é defender, por exemplo, que a figura do amoral não é conceptualmente estranha ou impossível: alguém que reconhece certos juízos morais como corretos e portanto avalia um determinado curso de ação como recomendável, mas que não se sente de nenhum modo compelido a fazer o que julga ser o correto. A figura do amoral serviria de contra-exemplo a uma posição internalista na medida em que mostraria que a ligação entre aceitar um juízo moral e estar motivado para agir é precisamente uma relação meramente contingente.
4. O realismo não-metafísico
4.1. As teorias da razão prática
As chamadas teorias da razão prática constituem uma tentativa de reclamar objetividade para a ética evitando os problemas que o realismo metafísico levanta, isto é, evitando sobrepovoar o mundo de entidades com força prescritiva, como factos morais, que serviriam de referente para os nossos conceitos morais. Filósofos como T. Nagel (1970, 1986), R. Dworkin (1996) ou C. Korsgaard (1996, 2003) encaixam-se nesta linha de pensamento, ainda que com diferenças entre si.[5] O ponto crucial que une todas estas propostas é o seguinte: a ética é fundamentalmente uma questão prática, não teórica; isto significa que o pensamento ético pretende ser uma resposta a uma questão que é diferente daquela que, por exemplo, anima o conhecimento científico. A ciência quer responder à pergunta ‘como é o mundo?’, e por isso o seu objetivo é descrevê-lo da forma mais aproximada possível. A ética pretende responder à pergunta ‘como devemos agir?’; o seu objetivo não é chegar a uma representação fidedigna do mundo, mas antes chegar a uma solução para um problema prático.[6] Esta outra forma de realismo rejeita assim a ideia de acordo com a qual os juízos morais seriam objetivos na medida em que empregam conceitos que referem entidades ou factos que existem independentemente desses conceitos (e seriam por isso verdadeiros quando corretamente descrevem esses factos e falsos se falharem nessa tarefa). A sua aposta é outra: o que faz da ética um domínio do conhecimento que pode ser verdadeiro e o que confere aos juízos morais um critério de correção não é o tentarem ser uma representação fidedigna do mundo, mas o facto de serem juízos racionalmente justificados, i.e., que seguem as regras universais da razão. Ou seja, as respostas éticas decorrem do exercício da razão prática, e o juízo moral constitui a conclusão de um raciocínio prático. Assim, as teorias da razão prática escapam, até certo ponto, aos ataques endereçados ao realismo metafísico – porque se a boa ação moral se identifica com a ação racional, com o que é racional fazer-se, então não precisamos postular a existência de especiais propriedades éticas no mundo nem de especiais faculdades mentais para poder conhecer as verdades éticas; não precisamos pressupor um domínio de factos morais objetivos, mas apenas mostrar que há princípios da razão prática que são constitutivos da própria agência racional. É por aqui que se reclama e garante objetividade para a ética – pelo facto de aí se responder a razões, que serão, por definição, gerais, e estarão disponíveis de igual modo para todos os agentes racionais, na medida em que estes podem descobrir, por meio de um procedimento puramente racional, o que é a coisa a fazer, independentemente de quais sejam as suas motivações subjetivas e contingentes. Neste sentido, por via da racionalidade, a objetividade será uma noção próxima da imparcialidade, e o que importará fundamentalmente (para a questão da objetividade) é o processo por meio do qual se chega às respostas morais – um juízo será objetivo se esse processo ocorrer em condições de racionalidade ideais, se o agente estiver na posse de toda a informação relevante, se não houver falhas de raciocínio ou problemas de consistência, e se nos afastarmos de factores e motivações contingentes, subjetivos ou pessoais (que decorrem do facto de eu ser esta pessoa, e não uma pessoa qualquer).
Claro que também esta proposta não é isenta de problemas – ela é visada pelos partidários do realismo metafísico, por não ser capaz de assegurar mais do que uma forma de intersubjetividade racional. Para Shafer-Landau (2003), por exemplo, o facto de alguma coisa ser moralmente correta ou errada não depende de qualquer ratificação de uma perspetiva, seja ela atual ou racional/ideal; pelo contrário, a realidade moral tem de ser “conceptualmente anterior e existencialmente independente” (Shafer-Landau 2003: 16) dos possíveis veredictos éticos a que se poderia chegar a partir de algum ponto de vista ideal. Shafer-Landau faz, a esse propósito, uma distinção entre factos e princípios morais: “os factos morais são as coisas em virtude das quais as condições de verdade das asserções morais são satisfeitas; (…) [os princípios ou standards morais] explicam por que é que os factos morais são como são” (Shafer-Landau 2003: 15). Os factos morais (as instâncias particulares do que é certo ou errado, bom ou mau) só existem porque existem agentes morais; já os princípios morais existiriam mesmo que não existissem agentes. Se segundo as teorias da razão prática, o moralmente errado não é independente do que os seres racionais são capazes de conceber como errado, assim legislando em conformidade, para um realista metafísico como Shafer-Landau, a fonte dos princípios morais não está na nossa natureza de seres racionais, ou na nossa identidade prática, e o conteúdo das obrigações morais de nenhum modo é determinado por algum tipo de comprometimento racional.[7]
As teorias da razão prática são ainda atacadas a partir de um outro ângulo – pelos que contestam que o ponto de vista moral se confunda simplesmente com o ponto de vista puramente racional. B. Williams (1972, 1985) contestará que o ponto de vista ‘a partir de lugar de nenhum’ defendido, por exemplo, por T.Nagel, o ponto de vista maximamente imparcial e impessoal (porque desconectado das motivações e dos aspetos mais idiossincráticos e contingentes que caracterizam cada indivíduo em particular) seja aquele que nos interessa ocupar para pensar na moralidade. Para Williams, o ponto de vista ‘a partir de lugar nenhum’ seria não só impossível de ocupar como moralmente indiferente. Williams é um dos principais porta-vozes daquilo a que Korsgaard (1986) chamou de cepticismo acerca da razão prática. De facto, para Williams a tentativa de fundamentar a moralidade pela via da razão falha redondamente na medida em que só somos capazes de reconhecer algo como valioso, ou razões para agir de determinada forma, porque somos seres com interesses, preocupações, cuidados. Williams é por isso frequentemente acusado de albergar uma visão muito pobre ou limitada do que seria a racionalidade prática (uma concepção meramente instrumental), mas não é de todo verdade que Williams arrede a possibilidade de a razão perscrutar os fins da ação, ou sancionar as motivações do agente; o que ele defende é que, para pensar na complexidade do fenómeno da moralidade, não é suficiente cumprir as exigências formais da razão. Mesmo que o agente deliberasse correctamente, não estivesse na posse de crenças falsas, não cometesse erros lógicos e partisse de um conjunto coerente de crenças (mesmo que ele cumprisse todos os requisitos da racionalidade), ainda assim as razões morais poderiam não ser claras para ele (sem que isso implique uma acusação de irracionalidade). É verdade que podemos usar a razão para pensar acerca de fins, mas o ponto é que se não formos suficientemente imaginativos, se não tivermos determinadas preocupações, se não formos suficientemente sensíveis à saliência moral das ocasiões, nem suficientemente bem formados, nunca reconheceremos determinadas razões para agir, como as razões morais.
4.2. As teorias da sensibilidade
Os partidários das teorias da sensibilidade – notavelmente, John McDowell (1998) e David Wiggins (1987) – olham para o espectro das soluções meta-éticas disponíveis e consideram que o seu grau de sofisticação não é ainda suficiente para permitir responder cabalmente ao problema de saber se existem ou não factos morais objetivos, uma vez que nenhuma delas leva verdadeiramente em conta a natureza do pensamento moral. As teorias da sensibilidade pretendem ser uma solução de compromisso entre as várias opções – sustentarão que as propriedades morais são reais, são aspetos do mundo e não são mera efabulação nossa (portanto, há um compromisso realista), mas não existem da mesma forma que outras propriedades por meio das quais descrevemos o mundo, no sentido em que as propriedades morais, ao contrário dessas outras propriedades, dependem das nossas respostas, e portanto da nossa sensibilidade particular.[8]
O modelo para pensar nas propriedades morais, de acordo com esta perspetiva, é o das qualidades secundárias. São portanto propriedades que não fazem parte da estrutura causal do mundo, mas que estão dependentes da sensibilidade do observador – ou seja, não existem no mundo ‘em si’, mas existem para aqueles avaliadores que são capazes de percepcionar o mundo da forma adequada. O argumento é o seguinte: é um absurdo conceptual pensar nas propriedades morais nos mesmos moldes em que se pensa nas propriedades físicas dos objetos, como propriedades que estariam ‘lá’ independentemente de nós, pois as propriedades morais implicam necessariamente a presença de alguém que seja capaz de perspetivá-las. Do mundo ‘em si’ não faz parte o valor, como também não faz parte, por exemplo, a cor – o aparato perceptivo particular que nos permite ver cor é um ‘ponto de vista especial’; da mesma forma, as capacidades paroquiais que nos permitem atribuir valor moral aos acontecimentos.
Assim, os defensores de uma teoria da sensibilidade concordam com a posição de partida de um anti-realista como Mackie; só não concordam com as consequências que os anti-realistas daí retiram. As propriedades valorativas, como em geral as qualidades secundárias, devem ser entendidas em termos de uma disposição do objeto para apresentar um certo tipo de aparência perceptiva. Mas é errado supor que aquelas entidades que não existem independentemente da sensibilidade humana não são propriedades reais. Por outras palavras, as coisas não são moralmente erradas ou acertadas independentemente do que as pessoas com a capacidade de percepcionar valorativamente o mundo são capazes de pensar acerca delas. Como é que uma tal posição pode responder a uma versão do célebre dilema de Êutifron? Uma ação é moralmente errada porque nós assim a consideramos, ou nós avaliamo-la dessa forma porque ela é errada? Parece que uma proposta que se queira realista teria que optar pela segunda alternativa, mas no caso das teorias da sensibilidade parece haver aqui um círculo.
Os detractores de uma tal visão de compromisso argumentam, claro, que essa dependência circular não é resolvida. Num realismo dependente da sensibilidade humana, será a sensibilidade ‘padrão’ a definir o que é algo ser errado, cruel ou benevolente. Se quiséssemos, por hipótese, definir ou tentar perceber o que é alguma coisa ser cruel, o mais longe que conseguiríamos ir seria o seguinte: alguma coisa é cruel se for ajuizada como tal por um tipo de pessoa com a sensibilidade e educação adequadas, etc. Mas como é que podemos saber ou definir quem é esse tipo de pessoa, o juiz apropriado? O juiz apropriado seria precisamente aquele que é capaz de discernir o que é uma ação cruel. Portanto, a nossa sensibilidade para detetar no mundo o que é moralmente valioso só se entende por relação aos conceitos morais de que dispomos, e inversamente só dispomos do aparato conceptual de que dispomos porque detemos uma certa sensibilidade para detetar determinadas saliências morais. Do outro lado, argumenta-se que essa circularidade é precisamente a tradução do facto de não sermos capazes de pensar no que é o valor a partir de fora da nossa experiência valorativa; i.e., se queremos entender o que é ser certo, errado ou cruel, não podemos fazê-lo senão já a partir de um ponto de vista avaliativo, que detém esses conceitos, não podemos transcender o ponto de vista moral (e querer saber o que é o ser-errado em si). Não há como partir de um ponto zero, não há como avaliar o pensamento ético a partir de fora do pensamento ético.[9]
Assim, para McDowell, é possível evitar as acusações de subjetivismo porque podemos ter juízos morais verdadeiros objetivamente ainda que não verdadeiros universalmente; a objetividade dos juízos morais é uma objetividade dependente de determinadas capacidades paroquiais, e de uma sensibilidade corretamente formada, mas ainda assim objetividade – será uma questão de afinação da ‘percepção’ moral, que naturalmente é influenciada pela nossa formação intelectual e prática (McDowell usa a palavra alemã Bildung). Um dos pontos criticáveis desta abordagem é fácil de identificar: o acesso cognitivo às propriedades morais está então dependente de uma sensibilidade moral adequadamente desenvolvida e formada – inspirando-se em Aristóteles, McDowell usa amiúde a figura do ‘virtuoso’ para falar do ‘expert’ moral, aquela pessoa que sendo capaz de detetar a saliência moral das situações, reconhece certas razões morais como razões para agir (que para outros podem ser inacessíveis), e consegue discernir, em cada ocasião, qual é a coisa certa a fazer. A diferença entre uma pessoa virtuosa e uma que não o seja está então ao nível da ‘educação do olhar’ (só assim certas razões se tornam visíveis para alguém), não está ao nível de uma correta aplicação de princípios (de universalizabilidade, de consistência) ou de um procedimento decisório racional. Perde-se então a ambição universalista: se os teóricos da razão prática queriam uma moral válida universalmente, com pretensões democráticas, porque acessível a todos os seres racionais, McDowell deixa-nos com uma moral válida apenas para os virtuosos, para aqueles cuja sensibilidade foi corretamente formada. E os problemas não terminam por aqui, pois há ainda outras questões por responder. Por exemplo: como identificar quem é o virtuoso? No que toca a definir o que conta como moralmente condenável não existe o mesmo consenso alargado que existe em relação a definir o que conta como vermelho, para recuperar a analogia anterior.
E como se resolve, desta perspetiva, o problema que assolava o realismo, o problema de conciliar a objetividade da moralidade com o carácter prático dos juízos morais? As capacidades que fazem de alguns de nós agentes capazes de reconhecer determinados eventos como instâncias de coisas cruéis, por exemplo, são capacidades conceptuais mas que acarretam uma determinada disposição para agir. McDowell não quer abdicar nem da suposição cognitivista e objetivista nem da conexão interna e necessária entre os juízos morais e a motivação para a ação, e isso condu-lo a uma solução original. O fundamental na definição das nossas “habilidades morais” é a formação de um ponto de vista, que definirá tanto a forma como se vê e avalia a realidade, como a disposição para agir. No entanto, no caso das sensibilidades morais bem formadas, a motivação não é algo que se acrescenta, mas decorre necessariamente da capacidade de reconhecer um determinado traço da realidade como sendo moralmente condenável (por exemplo). Isto significa que para manter o carácter prático dos juízos associado a uma posição objetivista acerca da moralidade, McDowell deixa cair os pressupostos humeanos de que a motivação está sempre dependente de um desejo e de que as crenças não podem ser intrinsecamente motivantes. McDowell sustentará que não temos que aceitar essa divisão entre estados mentais puramente cognitivos (como as crenças) por um lado, e estados mentais não-cognitivos, que seriam responsáveis pelas nossas inclinações (como os desejos), por outro. Ou seja, a crença moral de que é correto fazer X pode ser entendida como tratando-se de uma crença acerca de como o mundo é mas que acarreta consigo determinados poderes motivacionais. Nesse caso, a motivação para a ação derivaria diretamente da correta percepção da situação em que alguém se encontra, bastando para isso que o agente detivesse certos estados mentais de natureza híbrida – os chamados besires, para usar um termo cunhado por J. E. J. Altham, isto é, estados cognitivos, como crenças, que têm poderes motivacionais, como os desejos.
Para
além da plausibilidade do modelo besire,
há uma outra crítica possível relativamente a esta posição. Se para os
anti-humeanos é somente o reconhecimento de que X é a coisa a fazer que conduz
ao desejo, então parece impossível que os agentes acreditem que X é a coisa
correta a fazer e não tenham também a motivação para o fazer. Podemos, no
mínimo, considerar que se trata de uma visão algo idílica e intelectualista do
que significa ter razões, neste caso morais, para fazer alguma coisa (ou então
a virtude será algo ao alcance de muito poucos). McDowell afirma mesmo o
seguinte: “os ditames da virtude, se adequadamente apreciados, não são
contrabalançados com outras razões (…). Se há uma situação em que reconhecemos
genuinamente que a virtude impõe um determinado mandamento, então nesse caso
considerações que, na ausência desse mandamento, poderiam ter constituído
razões para agir em outro sentido são totalmente silenciadas – e não apenas
desqualificadas ou subjugadas – por ele.” (McDowell 1998: 90). Ao supor que não
existe sequer um balanceamento de razões, mas que perante os requerimentos
morais as outras possíveis razões simplesmente desaparecem, anulam-se, podemos
questionar se é de facto de agentes como nós que estamos a falar. Por exemplo, neste
modelo, parece não haver qualquer espaço para a possibilidade da fraqueza da
vontade – aquele estado psicológico mais ou menos recorrente, em que somos
capazes de ver qual é a coisa a fazer mas não somos capazes de nos mover na sua
direção.
[1] Korsgaard (1996: 36-37) nota que aqui reside, precisamente, a diferença entre um realismo moral substantivo ou metafísico e um mero realismo procedimental. O realismo procedimental é uma posição mais ou menos inócua do ponto de vista metafísico, pois envolve apenas a ideia de acordo com a qual há respostas, que podem ser melhores ou piores, para os problemas morais. Já o realismo moral substantivo terá de apelar à existência de factos morais objetivos: são estes que dão respaldo e sustentação metafísica às soluções normativas que somos capazes de encontrar.
[2] Outro dos argumentos a favor do realismo moral prende-se com a plausibilidade das explicações morais: frequentemente invocamos propriedades morais para explicar determinados comportamentos (por exemplo: “Hitler levou a cabo a ‘solução final’ porque era um ser humano cruel”) e isto parece que só pode ter algum sentido relevante se estivermos a referir-nos realmente a propriedades objetivas das ações ou do carácter das pessoas que as levam a agir numa dada direção, e não se se tratar somente de uma projeção dos nossos sentimentos perante o que acontece. A função explicativa das propriedades morais, e a sua relevância na defesa de um realismo moral, são sublinhadas pelos chamados ‘realistas de Cornell’, notavelmente D. Brink (1989) e N. Sturgeon (1988). De referir, no entanto, que este argumento é atacado, por exemplo, por S. Blackburn (1998) ou G.Harman (1977): ambos se esforçam por mostrar que não temos razões para acreditar na existência de factos morais uma vez que não precisamos assumir a existência de tais factos para explicar os fenómenos morais – estes podem ser explicados em termos puramente psicológicos. Isto é, aquilo que pode explicar o facto de se considerar que matar é errado ou que Hitler é cruel é apenas a circunstância de termos sido criados e formados de uma certa maneira, num certo ambiente, e psicologicamente termos desenvolvido essa particular forma de avaliar o mundo (que não deixa de ser robusta só por ser contingente). Há aqui um critério de parcimónia: não precisamos postular propriedades morais para fazer sentido das nossas avaliações morais.
[3] Outro argumento a que Mackie recorre é o argumento da relatividade, por meio do qual ele invoca um outro aspecto que os realistas morais precisam explicar: a existência do desacordo moral. O tipo e a prevalência do desacordo moral são de tal ordem – se pensarmos, por exemplo, na grande variedade de códigos e normas morais que as sociedades humanas acolhem – que faria sentido considerá-los como mais um indício de que não estão disponíveis factos morais objetivos; parece muito mais legítimo supor que os códigos morais são o reflexo de modos de vida particulares do que o resultado da descoberta de valores objetivos.
[4] O problema da persistência e profundidade do desacordo moral, que afetava o realismo moral, também parece dissolver-se se adoptada a perspetiva não-cognitivista. Pois, neste quadro, não é mais um desacordo a propósito de factos que está em questão – esse, sim, problemático se se quiser assegurar a objetividade do discurso moral – mas um desacordo a propósito de atitudes valorativas perante o mundo.
[5] Nagel (1986) prefere falar de “realismo normativo”, ao passo que Korsgaard (2003) ou Rawls (1980) preferem a designação de “construtivismo”. Korsgaard prefere esta designação porque quer sublinhar a ideia de acordo com a qual os conceitos normativos constituem não modos de designar coisas no mundo mas antes nomes que referem soluções para os problemas práticos que seres racionais auto-conscientes enfrentam. Korsgaard (1996) considera, além disso, a posição de T. Nagel ainda demasiado dogmática, porque demasiado presa ao quadro mental do realismo substantivo ou metafísico.
[6] Para Korsgaard, a própria ideia de acordo com a qual todo e qualquer conceito cognitivamente significativo tem como única função descrever a realidade é em si um resquício de um empirismo verificacionista de que a filosofia analítica não se livrou por completo (Korsgaard 2003: 105).
[7] Mas então qual seria o fundamento desses standards ou princípios morais? Por que razão são esses e não outros? A resposta do autor é que não existe uma justificação última para isso, tal como não existe uma justificação para as leis da lógica ou da física. Eles são factos brutos acerca do mundo, e irredutiveis a quaisquer outros tipos de factos (por exemplo naturais, como vimos).
[8] Convém registar, no entanto, que enquanto McDowell considera a sua posição uma forma de realismo moral, Wiggins prefere designar a sua própria perspetiva como ‘subjectivismo’.
[9] Na verdade, McDowell empreende uma crítica bem mais profunda e feroz ao que seriam as ambições de algumas propostas meta-éticas, no que diz respeito à fundamentação da discussão normativa – ele argumenta que essa busca pela fundamentação da ética fora do terreno normativo (de propriedades morais que estivessem ‘aí’, reificáveis) é uma necessidade moderna que está estritamente ligada a uma noção de objetividade científica propalada pelo desenvolvimento da ciência moderna. Mais, a própria ideia de que é possível dar esse passo atrás e definir o que é o mundo objetivamente, essa constante tentação do pensamento em sair para fora de si mesmo, é o que estaria na origem de muitos problemas (pseudo-problemas?) ou mal-entendidos filosóficos.
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Outros artigos
Acção; Juízo Moral; Naturalismo; Meta-Ética; Valores
Como citar este artigo
Cadilha, S. “Realismo/Anti-realismo Moral”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2019), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/realismo-moral>.
DOI: http://doi.org/10.34619/y1k4-7n97
Publicado em: 10 de Abril de 2019
FCSH, Universidade Nova de Lisboa
<susanacadilha@gmail.com>