Secularização

O termo saeculum já aparece na Vulgata de São Jerónimo para traduzir kósmos, no sentido de este tempo presente por oposição ao futuro anelado do Reino de Deus. Daí provindo a sua utilidade não apenas para caracterizar o mundo pagão mas a própria cisão dentro da Igreja politicamente triunfante entre clérigos e leigos (Catroga, 2010: 49).

Todavia, é já na Idade Moderna que o termo secularização surge como significando mundanização e temporalização, a mundanização de um tempo doravante autónomo. De permeio aparece o termo secularizar como transferência dos bens eclesiásticos para mãos régias, muito comum nos territórios da Reforma (Catroga, 2010: 56-59).

Fala-se hoje, por sua vez, de pós-secularização, não como recuperação pura e simples da religião nas diferentes esferas da vida, antes como reconhecimento de que a secularização tem por detrás uma espécie de palimpsesto religioso conformado pelo cristianismo e pelo judaísmo (e também pelo Islão) que a vitaliza. Assim sendo, uma sociedade pós-secular deveria reconhecer que a esfera pública é composta de tradições laicas e religiosas que se fecundam mutuamente (Reyes Mate, 2013: 228).

Na verdade, pace os melhores esforços de Blumenberg, o projecto de autonomia moderno por mais único que possa ser, querendo responder aos anseios de justiça de uma história pejada de ultrajes e miséria, para a qual não poucas vezes religião e igrejas deram o seu contributo, entronca nessa via milenar de resposta material à injustiça e de responsabilidade pelo outro homem protagonizada pela matriz judaico-cristã, aquilo que se designa por herança jerosolimitana, além da ateniense. Essa herança de Jerusalém traduz-se logo no mito genesíaco da expulsão do paraíso, da transgressão livre que introduz o mal no mundo contra a inclinação mais própria de Adão, e mais própria ao próprio potencial de liberdade, caso a salvação preceda a criação. Essa entrega da liberdade, tergiversada ou não, é igualmente uma libertação da criatura humana enquanto imago Dei, um êxodo, uma fuga ao cativeiro da divinização do mundo, da submissão às potências do mundo, desmitologizando tanto as forças naturais (geralmente sacralizadas porque se não lhe conhecem os mecanismos de funcionamento) como as serventias criadas por um homem potencial e efectivamente transgressor desde o início. Não por acaso Ezequiel admoesta, em nome do Senhor, o rei de Tiro que não passa de um homem julgando-se Deus (Ez 28, 9).

No grito profético e depois messiânico anuncia-se já a redenção (e a aura de todas as falhadas redenções modernas), não a que justifica o sofrimento em vista de um bem maior, antes aquela advinda da rebelião contra as lógicas de poder que sustentam a sua pretensa legitimidade sacral no cuidado político e cultual das potestades cósmicas em geral, entretanto divinizadas, que tomam a seu cargo. O referente monoteísta é o de uma relação vertical com um Absoluto libertadora, ao relativizar todos os endeusamentos fácticos – quando, por exemplo, o Jovem Marx clama pela libertação das clausuras do homem através do proletariado, não ressoa aí o “bem-aventurados os mansos”, isto é, aqueles injustamente amansados?

Em suma, a dimensão fontal da secularização é interior à matriz judaico-cristã. E de tal maneira parece isso ser manifesto no caso do cristianismo que Rosenzweig atribui a este o dar radical forma histórica às exigências da encarnação; de um deus feito homem. Donde, segundo o filósofo judeu, a realização do cristianismo como mundanização e temporalização da redenção, e implicação da mesma em todos as esferas da vida, incluindo naturalmente a política (Rosenzweig, 1998). Quer isto dizer, não obstante os riscos de desdivinização à outrance corridos pelo cristianismo de acordo com Rosenzweig, que o vocabulário redentor e a pré-compreensão redentora da vida e da história permeiam por dentro o processo de autonomização moderna do homem, independentemente de este ter conseguido só por si suportar o fardo, deformando ou obnubilando a sapata escatológica. 

Todavia, aquilo que podemos designar por processo de desfragmentação da religião, concentrando-a num eixo vertical e exterior ao mundo, transcendente, por abandono da sua disseminação por entre o mundo, como se fosse o outro lado do profano em cada coisa, tem um caminho com os seus momentos particulares no evolver da história do Ocidente. Porque, na verdade, a secularização vale apenas para uma parte do mundo abraâmico, estabelece relações com a história do Islão, mas embate de frente com o mundo sub-continental indiano e ainda mais com as civilizações trans-himalaicas. Significa isto que tudo aquilo que até aqui dissemos e mesmo o processo globalizador iniciado pelo Ocidente, marcado, portanto, pela secularização, ou não vale ou vale somente de forma muito limitada para tais civilizações. Outra coisa seria questionar, assim sendo, se a proposta cristã é de facto universal ou tão-só relativa. Porém, esse é um problema teológico-ecuménico não aferido por esta Entrada.

As sociedades político-sacrais do mundo antigo estruturavam-se em função de uma sacralidade quase horizontal em que sagrado e profano estavam profundamente mesclados, ou melhor, estavam compenetrados, encastrados, produzindo vivências inseparadas e inseparáveis. O mundo estava saturado de sagrado.

Deve-se então ao cristianismo, como o próprio Rosezweig corrobora, mas explorando a herança nesse sentido da tradição hebraica, ter, de certo modo, criado o religioso como esfera da vida à parte, colonizando, no entanto, a vida profana, isto é, a vida política, social, cultural e étnica O religioso, no entanto, é necessário precisá-lo, não se diferencia então do secular, que dele se pretende vir a separar em corte e oposição, antes do profano (pro-fanum), do que está em função do sagrado, sem o sagrado nada é, mas também já não é uma extensão sacral em si. Ora bem, essa esfera de vida à parte cria uma identidade singular porque substitui todas as demais. Uma identidade exclusiva que não dependia nem estava relacionada com a etnia do devoto. Essa identidade terá sido a primeira tentativa de desenvolver uma identidade religiosa comunitária enquanto esfera separada, distinta das relações com a família, a Cidade, ou a etnia (Hurtado, 2017: 152). Convém ainda acrescentar que neste novo modelo, o qual amadurece apenas a partir de Santo Agostinho, a dinâmica sacro-política e sacro-social em geral não desaparece, pelo contrário, essa identidade exclusiva deve permear todas as restantes, modelando o tom de cada uma delas. No fundo, mantém-se a ideia de uma comunidade político-sacral, só que separando o sagrado do profano, evacuando o mundo em si do divino, impondo-se verticalmente, de cima, a divindade ao mundo. O mundo fica impregnado pelo sagrado, mais propriamente, pelo religioso.

É verdade que, muitas vezes, no final do mundo antigo, o cristianismo se limita a cristianizar a compacticidade antiga, o “velho” comércio horizontal entre o sagrado e o profano, quando procura revestir de dimensões cristãs o mundo campestre ocidental tardo-romano e germano. No entanto, já aí há um deslocamento, não se trata de uma mera bênção, antes se procura evacuar todo o sagrado residente nos lugares, pessoas, acontecimentos, objectos ou seres per se e reenviá-lo para o religioso como transcendente ao profano, nas alturas. De maneira a que seja a esfera separada a revestir de sacralidade (religiosa) o terrenal, que em si nada é a não ser profano, no sentido literal (pro-fanum), do que está em função do sagrado, depende dele para adquirir sentido; sentido esse que deixa de ser inerente ao seu plano (horizontal).

De qualquer forma, a impregnação do profano pelo religioso e sobredeterminação do cristianismo sobre as diferentes esferas da vida na Idade Média, mesmo aquando do lançamento projecto monista gregoriano de pendor teocrático, através da monarquia papal, nem mesmo assim as diferentes esferas voltaram a compactar-se num todo sagrado indistinto. A reforma gregoriana ao identificar algo despectivamente o secular com a instituição política e ao inventar a oposição franca entre clerical e secular, não deixa de reforçar o dualismo. Da mesma maneira, o seu esforço de constituir um ordenamento jurídico unitário leva, paradoxalmente, à secularização do direito canónico entretanto criado e ao seu gradual afastamento do forum internum, da consciência e da esfera teológica e pastoral (Prodi, 2002: 113-114). Assim, a difusão, também ela medieval, da ideia aristotélica de que o poder secular (a política) deriva da natureza do homem e não da queda adâmica (enquanto registo mais ou menos perverso elaborado pelo homem para castigar o pecado e os delitos em geral), essencial ao processo de secularização política, não é o momento seminal, porquanto mesmo um projecto tão monista quanto o gregoriano não consegue apagar o resíduo indesmentível do religioso enquanto esfera separada, não podendo não deixar de o aprofundar, como se viu, sob pena de contradizer a sua matriz. Não foi por um mero acaso que a ideia de razão como base do Direito antecedeu o renascimento aristotélico do século XIII, aparecendo nos finais da décima primeira centúria, com a Escola de Bolonha (Prodi, 2002: 116-117).  

A longa marcha da descompactação e da assimilação do cristianismo durante a Idade Média, passando pelo envoltório ockhamista, mas também pelo de Nicolau de Cusa, ao mesmo tempo que a Igreja reforça a legitimação dos poderes instituídos, e se assiste de forma concomitante a uma progressiva e agostiniana desvalorização das aspirações messiânicas a um tempo distinto, pronto a interromper a marcha ominosa do tempo linear, hão-de levar à moderna afirmação da autonomia, a querer encabeçar os resgates de justiça há muito protelados.

Entra então em jogo a dissociação factorial moderna, isto é, a dissociação em factores relativamente autónomos, dotados de razões intrínsecas, das diferentes esferas da vida, radicalizando a autonomia do criado, e dialecticamente, radicalizando também o processo de descompactação. A religião passará a ser uma esfera da vida entre as demais, sem poder sequer evocar pretensões de sobredeterminação de conjunto. A demanda de sentido, porque ninguém dela se quer alhear nem alienar, pelo contrário, pretende-se retomar essa demanda precisamente onde a religião teria falhado, exige um esforço que não está garantido, depois da queda, por qualquer compenetração prévia. Porém, como não só não privilegiam a esfera religiosa mas até dela desconfiam, por força do seu monopólio anterior, os modernos vão em busca de artefactos de sentido noutras esferas, que não são senão substitutos sucessivos do verdadeiro absoluto, e por isso incompletos, deixando um rasto de vazio existencial, o tédio, a desertificação das possibilidades vitais. Em rigor, o cristianismo concentra o sentido da vida num “único absoluto” (se é que assim se pode dizer, para na sintética facilidade de expressão dar a entender o argumento), Deus. Ora, essa demanda unitária e concentrada de sentido não vai ser rejeitada pelos modernos, como dissemos. Simplesmente, estes virão a retirar Deus da equação. Porém, tudo o que é posto em sua substituição é insuficiente, incapaz de corresponder a expectativas tão justamente exigentes, transformando-se por isso num nada, porque seja o que for não estará à altura, e será absolutamente indiferente aquilo que for, nada fará a diferença e tudo se equivalerá. Consequentemente, todas as tentativas tendem a acabar num interminável já visto, num perpétuo enfado, e não poucas vezes num sucessivo atropelo à liberdade quando tais substitutos se crispam politicamente sem verdadeiras barreiras fixas que os tolham – não por acaso desse substituto absolutizante por excelência, esse produto moderno, esse deus mortal configurado na soberania, se diz que a pietas, farol iniludível a todos as restantes acções humanas, se lhe mantém exterior.

Pôr, por fim, em jogo como solução a pura horizontalidade das esferas separadas e retirar delas de forma sincrética (politeísta) o que possa servir e amparar, apenas serve o imediato. Identifica uma capitulação face à ausência de sentido (niilismo). Porque na antiga horizontalidade o sentido já vinha dado de imediato, não era de todo o sentido que se comprazia no imediato. Está ultimamente em causa, como bem observa Reyes Mate, o problema de manter o vigor dos desideratos emancipadores, utópicos até, sem referência à fonte donde procedem. Como garantir o orientação e eficácia dos princípios, sendo eles por natureza incompletos e as soluções substitutas, sem relação teológica com a fonte originante? Sem essa ligação rompe-se o contacto e os produtos secularizados estiolam por esgotamento do seu núcleo fontal, ao eclipsar o verdadeiro absoluto (Reyes Mate, 2018: 104, 120). O que é mais, como manter nesse horizonte puramente horizontal, ou mesmo socorrendo-nos de uma divindade esbatida e dúctil, sem redenção nem recompensa escatológica e com a inevitável sombra da morte pairando, o fino e difícil desafio da liberdade, o potencial de transcendimento, que não seja a recordação agradecida de um eventual dom algures recebido e a antecipação (projectiva, protensão) não menos incerta de que os vindouros preservarão a memória dos nossos melhores desígnios éticos e das nossas melhores obras, caso se mostrem dignos de rememoração. Tratar-se-ia certamente de um horizonte demasiado etéreo, em nada vinculante, um propugnáculo vazio e perigoso para projectos tão legitimamente potentes e para a enorme responsabilidade prática para a qual fomos chamados e esperados na terra. De resto, talvez seja a esta luz que possa também ser lida uma putativa genealogia biopolítica ominosa. Porque se a justificação da autonomia de um poder político radicado na natureza humana, de extracção medieval aristotélica, não tem apenas como fito negativo o controlo do pecado como mal social (mais tarde, o controlo das paixões da alma), mas passa a ter igualmente o objectivo positivo de pastoreio e cura das almas em ordem ao bem comum, então seria fácil encontrar aqui a genealogia de uma intervenção pública para formar, depois formatar as pessoas, ou (posteriormente) os indivíduos. Contudo, faz toda a diferença se essa formação se faz em função de um referencial transcendente, indisponível (por mais que se tenha tentado forçá-lo, naturalmente sem êxito), doador de sentido, norte libertador porque não está em concorrência com as forças contingentes, e como tal desmistificador de todas as tentativas de sacralização do poder, ou, pelo contrário, se realiza em torno de uma auto-referencialidade efémera, tendente a absolutizar-se a si mesma e a formatar as pessoas aplainando as diferenças, a ver se assim escapa à sua própria efemeridade e contingência – a tentação de transformar o limitado em ilimitado, culminando sempre no perigosíssimo vazio da desmesura, na arrogância violenta, qual fuga para a frente, de querer mutar o passageiro em perene.

No fundo, o projecto moderno, parece ter querido, em parte, exautorar a esfera da crença religiosa, ou, de forma mais benigna, neutralizar o seu raio de acção, o mesmo é dizer, domesticá-la, ora lançando-a para o também moderno mundo privado da consciência e da sensibilidade, ora remetendo o culto público aos ditames e necessidades do emergente Estado soberano, ora deixando-a, mais recentemente, alinhavar algumas propostas de significado sócio-político, na condição das fontes inspiradoras aparecerem amortecidas. Na melhor das hipóteses, as igrejas podem ter acesso pleno à ágora caso se comportem como fundos de reserva filantrópica, de preferência com um deus açaimado. Daí resultando o fascínio hodierno das comunidades políticas com as ditas escolhas de fé à la carte, e não tanto a preferência por uma religiosidade vivida em torno de uma confissão mas com vínculos institucionais mais ténues com essa confissão, pois aquelas não implicam quaisquer consequências praxistas, as quais são inerentes à profissão de fé enquanto itinerário integral de vida e não apenas vivência litúrgica numa esfera separada e acantonada. De resto, as escolhas religiosas à la carte são inconsequentes porque inodoras, uma espécie de colagem de materiais intrínseca ao sobreinvestimento contemporâneo no eu, adoptados por este e a si adaptados sem ter de sair da sua zona de conforto, como sói agora dizer-se. Até quando se dá um aparente descentramento, “isto fascina-me”, “aquilo desafia-me”, ainda estamos bem dentro do egotismo. Mesmo num momento estético de fronteira, “estou assombrado”, “algo me alumbra”, que pode muito bem tratar-se de um extraordinário veículo de passagem, mas também de um espelhismo, um perigoso efeito de embruxamento esteticista, ainda se está aquém da heteronomia, do sujeito exposto, confiadamente exposto próprio da religião.

A legítima dissociação factorial moderna, a associação monopolista da religião com uma ordem social injusta, obrigaram a uma mudança num sentido antropocêntrico. Todavia, as guerras da religião nos séculos XVI e XVII, encaradas de forma deficiente e insuficiente como um problema de confissões (Greengrass, 2015: 394-395), que supostamente teria obrigado à secularização política, afinal foram muito mais um problema decorrente da emergência da razão de Estado e da dinâmica de implantação própria de um poder absoluto, perpétuo e indivisível, como foi e é o poder adscrito à lógica soberana, com a vontade de imposição das suas senhas identitárias, entre as quais, à época, e à cabeça, estava a de uma só religião pública, a professada pelo soberano. Recuperando-se assim (expandindo-a e exponenciando-a até transformar o próprio Deus num soberano, reprojectando a soberania como num jogo de espelhos) a figura da omnipotência régia na corte celestial, projectada num deus mortal, quando a tradição bíblica, que já pudemos observar em Ezequiel, tende a libertar-se da imagem de um Deus-Rei, de Deus como um rei, o qual por sua vez não seria mais de Deus (Ricoeur, 2013: 221-222). De resto, uma tentativa de sacralização interna à política a que não vai ser alheio o próprio liberalismo, com a sua hagiografia, a formação do seu espaço sagrado intocável e indiscutível, celebrando a comunidade de indivíduos livres pertencentes a esse espaço, invocando até, por via puritana, toda uma tradição do Antigo Testamento acerca dos direitos do povo elegido (Losurdo, 2007: 306 e ss.).       

Por conseguinte, dada a preeminência do soberano, o estatuto das restantes religiões não escolhidas como religião oficial e a consequente tolerância em relação aos respectivos cultos passaram cada vez mais, e paulatinamente, a ser uma questão de discricionariedade soberana, tendo em conta os equilíbrios de poder tanto externos como internos. Não obstante, impôs-se a lenda, ou o mito da violência religiosa. Isto é, a ideia de que a ideia de que a religião é um rasgo trans-histórico essencialmente distinto dos rasgos supostamente seculares por inerência, como a política, possuindo uma perigosa inclinação para a violência, devendo, portanto, o seu acesso ao poder público ser fortemente restringido e a influência religiosa combatida (Cavanaugh 2009).    

O curioso, e infeliz não só para o projecto moderno mas igualmente para o cristianismo histórico, é que mesmo ao nível das soluções propostas pela modernidade, rompendo com a ideia de um tempo novo a consumar como resposta aos agravos e injustiças (no cruzamento de uma memoria passionis com uma memoria félix) em favor de um tempo linear – sem fim, de puro progresso, hoje de instantaneidade disruptiva da experiência e da duração as consumar (Benjamin, 2012), acima da realidade (gnóstico, portanto), mas que afinal se apresenta como continuidade sem fissuras do sempre o mesmo (curiosamente complementar do eterno retorno dionisíaco de Nietzsche) -, também aqui a secularização se faz por dentro da herança religiosa. 

Na verdade, na tradição da reflexão cristã sobre os anticristos, tanto canónica como extra-canónica, desde logo pensando na carta deuteropaulina aos tessalonicenses (2Ts 2), mas sobremaneira no livro bíblico do Apocalipse, percebe-se estar fundamentalmente em causa os obstáculos que as “potências demoníacas” opõem à consumação do tempo e à instauração definitiva do reino de Deus. Apenas o défice de plenitude e o prolongamento indefinido e, mais importante, acumulado das limitações estruturais e dos fracassos sucessivos que minam e capturam, em parte, como num halo, a vontade humana livre ao longo dos séculos convêm à operatividade do mal. Só essas condições configuram o pasto perfeito para alimentar a lógica de poder per se e com esta a lógica de dominação das potestades da Terra. No fundo, os anticristos não querem ser apocalípticos, no sentido próprio e revelador do termo, e se o manifestam ser de forma arteira, quando muito são exterministas. Querem sim perpetuar um tempo linear, vazio, um contínuo de nada, pois o mal é ultimamente inane. Nem tem poder para pôr fim ao tempo, só para pôr fim ao homem antes do (fim) do tempo, como o demonstram alguns anúncios e não menos manifestações concretas, em particular das religiões políticas, no decorrer do século XX, a que não é alheia uma vez mais a ideologia liberal Também ela tendente à sacralização, como já vimos) pelos seus precedentes relativamente aos bárbaros das colónias (não esqueçamos, é toda uma parte, a segunda, que Hannah Arendt dedica ao imperialismo em As Origens do Totalitarismo) e aos bárbaros do interior, reificados enquanto concernentes à esfera privada da propriedade, e ao predomínio da ideia da liberdade enquanto asseguramento dessa propriedade, inviolabilidade e imunidade (Losurdo, 2007; Esposito, 2010).

Os verdadeiros terrores bíblicos não são os do fim, pois os cristãos anelam pela transformação desta humanidade e de esta criação (não pelas sua simples dissolução enquanto entidade material – tentação, essa sim, gnóstica), antes provêm do medo de sermos (satanicamente) absorvidos pelo próprio mundo (tal como tem sido – por redimir) para todo o sempre. Contudo, não deixa igualmente de ser verdadeiro que os sucessivos protelamentos da parousía levaram também ao desenvolvimento da ideia de que, quiçá, o prolongamento do tempo comum fosse positivo; aí estava a relação privilegiada entre a Igreja e o poder para o atestar. Pelo que o katechon seria um fim a preservar, pois certamente os tempos do fim seriam tempos de terríveis provações e padecimentos provocados pelo anticristo. Uma saída argumentativa airosa para uma religião ainda presa à ideia de final; mas a outra ideia herdada de final. Como o final seria sempre terrífico, não deveria ser antecipado, deixado antes às mãos de Deus, isso sim, deveria ser retido pelo poder vigente custo o que custasse evitando a anomia, estirando ao máximo o presente (Reyes Mate, 2018: 52). Evitar a catástrofe, prolongando a catástrofe, eis um ensinamento muito moderno, no entanto gerado no seio do próprio cristianismo – por excessiva mundanização, talvez dissesse Rosenzweig.

Curiosamente, ou nem tanto, também neste particular e uma vez mais a razão moderna apologética de si mesma, cúmplice da teodiceia moderna na justificação do mal no mundo quando se transmuta em filosofia da história – confundindo facticidade e realidade, ao olvidar a realidade das vítimas, dos inermes sujeitos ao vulnus em nome da marcha do progresso e seus vencedores, no duplo sentido de não atender às vidas incumpridas que efectivamente foram e não puderam continuar a ser, frustradas nos seus projectos bem reais, e de as afastar da vista, a não ser como contabilidade do custo de oportunidade do facticamente conseguido -, parece exprimir-se igualmente na linha de justificação e desculpabilização de Deus, desagravando-o da incongruência do mundo. A filosofia da história como um ateísmo para maior glória de Deus, nas palavras de Odo Marquard (apud Zamora, 1998: 234) – aliás, a questão do mal e da teodiceia é todo um outro caminho alternativo para equacionar o problema da secularização, como o mostra Torres Queiruga, não necessariamente em corte com a modernidade, ou pelo menos não em corte com muitas das aquisições da razão moderna (Torres Queiruga, 2010).

Seja como for, o prolongamento indefinido do tempo enquanto cadeia causal na qual um presente de vencedores engendra um futuro de vencedores, olvidando um passado ominoso interpelante, gerador de outro futuro de vencedores e assim sucessivamente, sem interrupção, num contínuo presente de que do mesmo o mesmo se gera, não se apresenta nunca, pois, como novidade. Pelo contrário, a persistência do idêntico tolhe a possibilidade do sujeito de voltar a começar como outro diferente de si. Todavia, as vidas tragadas e incumpridas são referíveis não a um passado que bastava ter cumprido (não ter desaparecido) numa qualquer alínea alternativa, mas a um passado verdadeiramente heterológico, à imemorialidade de um outro simpliciter, traço, risco ténue mas decisivo e testemunho de um passado que nunca foi presente, da marca deixada na coxa de Jacob (Gn 32, 32), da nuvem que roçagou Moisés no Sinai (Ex 34, 5), das palavras apagadas pelo vento que Jesus escrevinhou na terra pisada pela adúltera (Jo 8, 8-9), da força que sempre passa por nós e nos põe aos gritos, nos eleva em clamor a ver se o alcançamos (Metz, 2007: 106). Pois bem, é essa alteridade radical pela qual somos responsáveis e da qual somos herdeiros, sobretudo enquanto herdamos essa heterologia, é esse fora, esse rasgão que nos rasga a mesmidade, a abrir-nos ao novum, ao por-vir em sentido próprio.

De qualquer forma, convém notar uma vez mais, como que abaixando em kenosis uma inusitada elevação de temperatura do discurso, serem todas as considerações até aqui expendidas inevitavelmente fruto das tradições abraâmicas; etnocêntricas, num senso rortiano, embora se queiram ecuménicas, universais, católicas, em sentido próprio. Pois bem, o problema reside inclusive aí, mesmo nesta muito moderna precisão metodológica e epistemológica, na aparência à prova de resíduos cismundanos, ou não nos tivéssemos atido a tradições que justamente um referencial moderno de dissociação factorial observa como tradições qua tradições, apenas tradições, eventualmente com uma importante palavra a dizer depois de passadas na peneira crítica da razão, mas dessoradas de tudo o resto.

Numa extraordinária conferência pronunciada num colóquio de intelectuais judeus de língua francesa, em 1998, Derrida parece ter tirar o tapete debaixo dos pés a uma tal presunção. A propósito do ter que viver juntos, Derrida realça a tremenda aporia de a vida em conjunto, ainda que sem fusão comunitária ou identidade sintética de propriedades. Pertencemos de antemão a uma pertença que não nos pertence, à qual não podemos renunciar e da qual somos responsáveis (os meus, os meus outros, etc.). A esta preferência, a esta hierarquia nunca podemos renunciar de boa fé, mas também jamais a poderemos justificar em nome da justiça universal, da errância peregrinante de Abraão. A este respeito estaremos sempre em falta a um primeiro dever de hospitalidade. E é a falta a este primeiro mandamento (amá-Lo sobre todas as coisas no próximo), que se falta por sua vez a si mesmo, como acabámos de enunciar, a tornar-se injustificável, imperdoável, inconfessável. Sendo justamente isso que há que começar por confessar: o inconfessável (Derrida, 2000: 40-41). Porém, como pode ser uma fractura de tal magnitude acolhida a não ser através de um plus, de um suplemento indo ao encontro (sem certezas) do incondicionado na abertura à transcendência? O simplesmente mundano, mesmo o melhor de uma razão sentinte e compassiva não tem poder, só por si, para alcançar aclimatar a justa medida. Assim sendo, estaremos afinal diante de tão-só tradições, ou de vasos comunicantes, deslizando pela sua própria contingência – contingência que se não pode fixar em definitivo e intempestivamente num qualquer ponto determinado e sobre-enraizado (o “não podemos sair de nós próprios”) sob pena de deixar de ser o que se anuncia por contingência: esse aflorar, tanger o real, lugar de passagem, de atravessamento – até ao seu à ilharga; vasos comunicantes ao au-delà.

Destarte, face a tudo isto, o mesmo é dizer, ao aparente fracasso do projecto moderno na sua raiz, que não em muitas das suas realizações e até aspirações, talvez se impusesse uma outra alternativa secularizadora, respeitando a autonomia do humano, mas na medida em que essa autonomia signifique a responsabilidade até à heteronomia pelo outro homem, e que só um garante incondicionado, um horizonte imaculado está em condições de oferecer, enquanto indisponível ponto fixo não dependente do nosso arbítrio potencialmente transgressor. Porque não procurar na secularização antes de mais uma abertura à transcendência, o deslizar contínuo e testemunhal do necessariamente aberto da contingência, que se contradiz desde logo a si mesma (além de se tornar impotente e procurar escapar à impotência com sucessivas fugas para a frente) quando se quer fixar, irredutível, num ponto e barra esse essencial deslizar? Quanto mais não seja, porque o logos subjacente às tradições monoteístas, tais como a do servo sofredor, não é de todo o carimbo à história dos vencedores e à legitimação da lógica de poder.

A secularização enquanto respeito pela singularidade, finitude, e liberdade do homem (afinal um respeito que já por si é respeitar o próprio projecto de Deus), requer tanto ligação e confiança metafísicas como autonomia no seu espaço próprio, vencendo a desfaçatez de um certo iluminismo purista (Fernandes, 2018: 187-191).

Em síntese, a secularização não como imunidade face à religião, por expulsão, neutralização, asseptização, ou, no melhor dos casos, tolerância da esfera religiosa no espaço público, mas antes como inclusão estruturante do homem-com-Deus, sub specie redemptionis, a única fórmula capaz de interromper um contínuo de tempo acumulado para nenhum propósito, olhando o futuro como resgate anamnético do passado, escutando o clamor que nos desinstala das vidas por cumprir e não prolongando o presente – alimentados muito mais pela realidade esquecida dos antepassados oprimidos do que pelo ideal dos descendentes livres, como manifesta Benjamim na sua duodécima tese do Conceito de História (Benjamin, 2010: 16). Porque, como refere Adorno, se não for a perspectiva da redenção, diríamos, da salvação (com uma soteriologia condizente), tudo mais não passa de remendos e alinhavos, mera técnica (Adorno, 2001: 259).

O tempo que resta… para a consumação, redenção, o tempo salvífico para a salvação é o tempo messiânico, é o tempo de um resto, do resto bíblico como aquilo que excede mais do que permanece, como a permanência da excedência, ou a resistência do que resiste a ser engolido pelo tempo infinito sem redenção. O resto não é que por fim fica depois de tudo ter acabado ou de todos os outros terem perecido. Resto é o que permanece insolidário de toda a divisão perfeita (resto zero), branqueando as injustiças passadas e presentes em nome de um encaixe optimizado ou a optimizar assintoticamente no tempo. O tempo do resto é, portanto, o tempo de um resto, não havendo já judeu nem grego, que resistiu às divisões e partições, aos seccionamentos, aos encaixes “perfeitos” de soma nula, mas sempre forçados, aplainando, rasurando a singularidade e a condição de ser-eleito-para-o-outro, como tal mesmificando. O tempo que resta é então o tempo contumaz à pretensa ordem inexorável das coisas que resiste para bem consumar o tempo. O tempo (messiânico) do resto incoa o fim dos tempos (Agamben, 2015: 57-60), no qual, por fim, o resto se cumpre (dissolve?) porque já nada há a implicar resistência (a razão de ser do resto que resta), pois tudo será novum, júbilo, Sábado sem ocaso.

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Como citar este artigo

Fernandes, A. H. “Secularização”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2019), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/secularizacao>.


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DOI: http://doi.org/10.34619/e3jv-b423


Publicado em: 20 de Junho de 2019


António Horta Fernandes

FCSH, Universidade Nova de Lisboa

<hortafernandes@fcsh.unl.pt>