Sujeito
A finalidade desta entrada não é a de fazer uma história detalhada do conceito de “sujeito”, mas antes proporcionar uma brevíssima introdução filosófica às várias problemáticas que lhe estão associadas. É preciso notar, no entanto, que este intento não pode ser realizado sem se mencionar, ainda que de forma muito passageira, alguns dos momentos seminais no que concerne à concepção do “sujeito” ao longo da história.
Em termos muito genéricos, a noção de “sujeito” refere-se ao “eu” ou ao que foi também designado por “si mesmo” ou “si próprio” (o inglês self). Normalmente, localiza-se na tradição filosófica moderna, isto é, cartesiana e pós-cartesiana, a emergência histórica da noção de sujeito. No entanto, já é possível encontrar no pensamento antigo alguns antecedentes da noção. Desde logo, a noção grega de psyche, que literalmente começou por significar “sopro vital” e progressivamente adquiriu o significado de “princípio vital que anima a matéria”. Este termo foi, mais tarde, vertido para latim como anima, isto é, “alma”.
É com o advento da filosofia moderna, ou melhor, de René Descartes e da filosofia cartesiana, que se pode dizer que a problemática do sujeito passa a ser o tema central da filosofia, aquele no qual se joga a própria problemática do fundamento último de todo o saber (filosófico e científico). Assim, a partir de Descartes, passando pelo período que se designou por Idealismo Alemão, até chegar à fenomenologia, em particular a de Husserl e de Sartre, o sujeito é o ponto a partir do qual se erigem os diferentes edifícios filosóficos.
Este paradigma das “filosofias do sujeito”, que dominou quase toda a filosofia continental desde o século XVII, começa a ser seriamente posto em causa já no século XX, não só em Wittgenstein, que marcou muita da chamada filosofia analítica, mas também na própria filosofia continental, em particular no pensamento de Heidegger a partir dos anos 30 e no quadro do pós-estruturalismo francês, a partir dos anos 60.
O sujeito como condição da relação a objectos
No quadro da filosofia moderna, o “sujeito” tende a ser considerado como correlativo da noção de “objecto”. Normalmente toma-se o acto cognitivo como protótipo da relação entre sujeito e objecto, mas, como a fenomenologia mostrou, esta relação – que é designada como “intencional” – está presente em todo o tipo de actos mentais, tais como o desejar, o imaginar, o querer, etc. Toda a relação consciente a qualquer coisa, e por maioria de razão aquela relação que designamos como cognição, pressupõe um pólo subjectivo. No sentido aqui em causa, o sujeito é a condição não só de todo o conhecimento, mas também de todo o tipo de relações “intencionais” a um objecto. No entanto, quando falamos do sujeito nestes termos, ainda não dissemos nada sobre o que seja a sua natureza. A pergunta que se segue é, portanto, em que consiste o sujeito do ponto de vista ontológico.
O problema mente-corpo
Talvez a abordagem mais frequente quando se trata de saber qual a natureza do sujeito consiste em perguntar se ele tem o estatuto de algo mental ou de algo corporal. Veremos que este binómio está longe de esgotar todas as possibilidades de determinação da essência do sujeito, no entanto pode ser útil começar por ele.
À partida, a ideia de que aquilo que eu sou é o meu corpo e organismo parece sugerir-se-nos naturalmente. Afinal, para além de cada um de nós se identificar com o seu corpo, também sucede que com a morte do organismo o sujeito parece desaparecer. Segundo esta perspectiva, o corpo seria, portanto, pelo menos uma condição essencial de haver um “eu”. Esta resposta, aparentemente natural, revela-se, no entanto, problemática a vários níveis. Para começar, há o problema de saber com que parte se pode identificar, ou em que partes do corpo se pode localizar o “eu”. Mesmo que se localizasse o “eu” numa determinada localização do meu corpo, por exemplo, numa determinada secção do cérebro, poder-se-ia dizer que esta não se identifica inteiramente com o eu, pois, na medida em que é uma localização objectiva, falta-lhe precisamente a consciência de ser um eu. Aqui, o problema não diz respeito à possibilidade de uma parte do cérebro poder ser também sujeito. O problema é, antes, que ser um sujeito implica uma perspectiva na primeira pessoa, precisamente uma consciência de si, e por isso qualquer coisa do domínio “mental”. Por esse motivo, nunca poderemos encontrar o “eu” ao olhar para uma imagem do nosso cérebro, porque aquele é de certa forma ínsito à nossa consciência e não à imagem como tal. Por exemplo, segundo Nagel (1974), o carácter subjectivo da experiência faz que seja impossível reduzi-la a propriedades físicas. Também Chalmers (1996) defende que a consciência não é uma propriedade redutível a propriedades materiais. Este é igualmente o motivo pelo qual é problemático que robôs extremamente sofisticados possam ser considerados “sujeitos”. Mesmo que exteriormente se comportassem como seres humanos, não se sentiriam como seres humanos, isto é, como “eus”, pois faltar-lhes-ia a consciência de si.
Mas se o “eu” não se pode reduzir ao corpo (pelo menos não ao corpo objectivo, ao corpo que vemos e analisamos exteriormente), então o que é o eu? Será qualquer coisa com um tipo de existência diferente da do corpo? Em que sentido se pode dizer que existe? Que tipo de existência é essa? Teremos de admitir uma existência não material?
O facto do eu, pelo menos do ponto de vista fenomenológico, não se poder reduzir ao corpo, à existência material, levou muitos filósofos a identificar o eu exclusivamente com a mente, com um tipo de existência imaterial. Descartes (1992: 122-123) diz que o eu é essencialmente uma “coisa pensante” (res cogitans), isto é, uma alma, uma mente, ou o que designaríamos hoje por consciência. Para Descartes, portanto, não só a minha existência como “coisa pensante” é conhecida (e até mais bem conhecida do que a existência de todas as outras coisas), como a sua natureza é radicalmente diferente da de todas as coisas materiais, que se caracterizam pela extensão.
Passa-se, assim, da ideia de que o eu implica a consciência de si para a ideia de que o eu é essencialmente consciência de si e, como tal, radicalmente diferente do corpo. No entanto, esta passagem foi criticada logo na tradição moderna, nomeadamente por Kant. Segundo Kant, do facto de ter de me pensar como sujeito lógico último de todos os meus pensamentos não significa que eu exista, de facto, como uma “substância” imaterial. Na verdade, Kant também não nega que o sujeito possa ter essa natureza. Aquilo que defende é que, em última análise, não podemos conhecer a natureza última do “eu” ou como ele é em si mesmo. O sujeito apenas é dado na medida em que se afecta a si mesmo e, enquanto tal, é sempre mediado pelo tempo enquanto forma do sentido interno.
Por outro lado, o facto de o si próprio implicar a consciência de si não significa que esta exclua necessariamente o seu enraizamento no corpo. De facto, vários filósofos puseram em causa o dualismo cartesiano. Por exemplo, para Espinosa corpo e mente são dois aspectos ou pontos de vista diferentes da mesma coisa (Espinosa 2020). Já Merleau-Ponty (1945: 408) diz que separamos o corpo do pensamento porque operamos com um conceito empobrecido de corpo como extensão.
O que quer que seja a consciência do ponto de vista ontológico, e apesar de a sua inerência ao corpo não poder ser excluída a priori, o que é certo é que o fenómeno do eu parece implicar ipso facto consciência de si.
Consciência, consciência de si e reflexão
Perante o disposto na secção anterior, a consciência de si parece ser condição de haver qualquer coisa como um “eu”. Por exemplo, para Descartes, o “eu penso” ou cogito pode ser, em última análise, identificado com a própria consciência de si. O “eu penso” não é meramente o acto de pensar, como algo diferente dos actos de sentir e imaginar, mas sim o próprio acto de ter consciência dos meus conteúdos mentais, sejam eles sentidos ou imaginados. Cada acto de sentir ou imaginar pressupõe como tal uma consciência de si. Ser um sujeito não implica apenas ter consciência de qualquer coisa, mas também ter consciência de si próprio – ou seja, implica a reflexão. Esta ideia de que toda a consciência é ou implica uma consciência de si é absolutamente fundamental para compreender todas as “filosofias do sujeito”.
Não se deve, no entanto, identificar imediatamente a subjectividade com a reflexão. Como os momentos em que reflicto são normalmente excepcionais, isso significaria que durante grande parte da minha vida não teria consciência de mim e não seria, por conseguinte, um sujeito, um eu. De todo o modo, há cambiantes na relação entre subjectividade e reflexão que permitem escapar a este problema. Por exemplo, segundo Kant, o “eu penso tem de poder acompanhar todas as minhas representações” (CRP B 131-B 132; trad. modificada), isto é, ainda que o “eu penso” não acompanhe todas as minhas representações em acto, ele tem de ser capaz de as pensar como suas, caso contrário estas não seriam “nada para mim” (ibidem). Traduzindo a linguagem de Kant, isto significa que, de direito, uma vez que sou um sujeito, posso sempre acrescentar um “eu penso” a cada um dos meus conteúdos de que tenha consciência, caso contrário não estaria consciente deles.
O paradigma cartesiano de identificação da subjectividade com a consciência de si foi criticado de muitas formas. Logo no século XVIII, David Hume (2000: 165) escrevia que “quando perscrutava no mais íntimo daquilo que chama o si próprio” encontrava sempre alguma percepção, mas nunca o próprio si. Nietzsche (BM 17) considerava que o máximo que se podia dizer da consciência é que esta “pensa” de modo estritamente impessoal, sendo o sujeito apenas algo que é projectado como causa dos pensamentos. Também Sartre, na Transcendência do ego, fala de uma consciência impessoal para a qual o ego é um objecto tão transcendente como qualquer outro.
A problemática da consciência de si envolvida em todos actos de consciência é desenvolvida ainda mais por Sartre em O ser e o nada. Depois de, em a Transcendência do ego,Sartre ter defendido uma concepção impessoal de consciência, na sua obra-mestra Sartre introduz a influente noção de consciência de si pré-reflexiva. Segundo Sartre, toda a consciência como consciência de objecto (percepção, desejo, etc.) é também originariamente consciência de si. Até este momento, Sartre estaria simplesmente a repetir a ideia cartesiana de sujeito. Só que, acrescenta Sartre, a consciência de um objecto exterior não implica uma consciência de si explícita, reflexiva, em que a consciência se toma a si mesma como objecto, mas antes uma consciência de si pré-reflexiva. Sartre grafa mesmo o “de” da consciência de si entre parênteses para indicar que esta consciência de si não é uma consciência de objecto. Quando estamos com sede, não pensamos explicitamente na nossa sede, a consciência de sede envolve uma consciência pré-reflexiva de sede. Obviamente é possível, a cada momento, dirigir a minha atenção para a sede, tal como estamos a fazer aqui, e transformar assim a consciência pré-reflexiva numa consciência reflexiva.
A distinção entre consciência de si pré-reflexiva e consciência de si reflexiva tem também outra implicação muito importante. Ao contrário da consciência de si reflexiva, a consciência de si pré-reflexiva é uma relação imediata, directa, intuitiva ou pré-cognitiva de mim a mim, em que o si próprio não se objectifica, não é ainda objecto para si próprio. A ideia de que o sujeito não é um objecto ou não tem o mesmo estatuto que os objectos exteriores da consciência é absolutamente fundamental na filosofia pós-kantiana, no pensamento romântico, no idealismo alemão, em Schopenhauer e nas chamadas filosofias existenciais. A consciência de si envolve, a partir de O ser e o nada de Sartre, simultaneamente uma separação e uma identidade imediata e pré-reflexiva entre o si-sujeito e o si-objecto, sendo que este não é dado verdadeiramente como um objecto. Isto é fácil de entender se se atentar no facto de que não é suficiente ter consciência do si como objecto, como quando olho a minha imagem num espelho. Olhar-me ao espelho não partilha as características peculiares da consciência de mim porque me vejo aí, precisamente, como um objecto. Aliás, este é o motivo pelo qual seria possível alguém ver a sua imagem no espelho e não se reconhecer. Já a identidade envolvida na consciência de si parece ser imune ao erro, motivo pelo qual vários filósofos como Descartes, Fichte ou Schopenhauer, entre outros, fizeram também da consciência de si o fundamento de toda a filosofia e de todo o saber, por pensarem encontrar nela uma evidência absoluta ou quase absoluta.[1] Inclusivamente, este é um aspecto da consciência de si que é vastamente discutido na filosofia analítica sob o nome de “immunity to error through misidentification”.
Outro problema associado à possibilidade da reflexão consiste em saber como é que o “eu” se pode tornar objecto para si mesmo, uma vez que é, antes de mais, uma condição de todo o conhecimento ou cognição. É verdade que, como defende Sartre, o “eu” pode tornar-se objecto para si mesmo através da reflexão. No entanto, como vimos, este conhecimento, para além de ser falível, não capta adequadamente a relação original, pré-reflexiva, de si a si. A impossibilidade de o sujeito se captar a si mesmo, dado que está pressuposto em toda a relação a objectos, remonta a Kant. Segundo Kant, todas as tentativas de o sujeito transcendental (o “eu penso”) se conhecer a si mesmo já sempre o pressupõem (CRP B 404/A 345). Também Schopenhauer (1972: 140-141) defende que o sujeito não se conhece a si mesmo como sujeito cognoscente, referindo para isso a analogia, que se encontra na filosofia vedanta, entre o sujeito e o olho, que é o órgão da visão mas que, como tal, não se pode ver a si mesmo.[2] No Tractatus (TLP 5.62-5.641), Wittgenstein compara o sujeito aos limites do campo visual para, desse modo, exprimir também a ideia de que o sujeito não se pode encontrar no interior do domínio da representação, mas coincide de certa forma com a própria forma do meu ponto de vista.
Unidade da consciência, identidade pessoal e a pluralidade do si próprio
No que diz respeito à fenomenologia da subjectividade, isto é, a descrição das propriedades essenciais através das quais ela nos aparece, há um aspecto ainda não referido que é igualmente essencial para compreender a problemática moderna.
No quadro da filosofia pós-cartesiana, a noção de sujeito não está associada apenas à problemática da consciência de si, mas também à problemática da unidade da consciência. A consciência, pelo menos a que não é patológica, caracteriza-se por ser uma unidade da multiplicidade, não apenas sincrónica (das várias componentes da minha percepção actual), mas também diacrónica (isto é, dos vários momentos da sucessão temporal). Na filosofia moderna acentuou-se a ideia de que o que unifica a consciência, o que lhe dá unidade, é o facto de ser a consciência de um sujeito, isto é, uma consciência de si. Por outras palavras, o sujeito foi tomado como aquilo que unifica ou dá unidade a todas as minhas representações, a todos os meus conteúdos mentais, constituindo o centro de todas as operações mentais. De facto, a multiplicidade de “coisas” de que temos consciência e os “actos” que lhes estão dirigidos não correspondem a uma mera adição. A consciência de “A e B” não se forma pelo acrescento da consciência de A à consciência de B; a consciência de A e B implica uma unidade da multiplicidade que não é redutível à soma das suas partes (CRP B 133ss.).
O problema da unidade da consciência também ficou associado ao problema da “identidade pessoal”, ou seja, à questão do que é que faz de mim a mesma pessoa ao longo do tempo. Este problema remonta, pelo menos na sua versão moderna, ao filósofo inglês John Locke. Locke acaba por identificar a identidade pessoal com a consciência de si (Locke 1999: 438ss.). Este argumento foi, no entanto, bastante criticado. Desde logo, poder-se-ia perguntar se um feto, um bebé ou alguém que sofresse de amnésia profunda não são a mesma pessoa ao longo da sua vida. Se respondêssemos segundo a nossa inclinação natural, isto é, afirmativamente, teríamos de abandonar a ideia de que a consciência constitui o si próprio, a pessoa, o núcleo do ser humano, e recorrer a outro critério de identificação da ipseidade, do self.
Uma das razões pelas quais o critério de Locke para a identidade pessoal parece ser insuficiente é que esta, apesar de relacionada com a unidade da consciência, não é estritamente idêntica a ela. É verdade que não há identidade pessoal sem unidade da consciência e, por isso, pode-se dizer que esta é um pressuposto da primeira. No entanto, isto não impede que a identidade pessoal inclua mais do que a unidade da consciência – por exemplo, critérios de natureza física ou biológica[3]. A unidade da consciência é quebrada temporariamente sempre que adormecemos ou desmaiamos e pode ser totalmente rompida em casos de amnésia profunda, mas isso não impede que eu continue a ser a mesma pessoa de vigília em vigília ou até nos casos em que não me consigo recordar da minha identidade passada.
Tal como Locke, Kant parece também estabelecer uma relação íntima entre a consciência de si, a nossa capacidade de reflectir e a unidade da consciência. No entanto, talvez a capacidade de reflexão, o “entendimento” em sentido kantiano, seja uma condição demasiado forte para haver “unidade da consciência”. Esta condição não permitiria, por exemplo, atribuir unidade da consciência a todos os seres, como bebés e animais, que não aparentem possuir a faculdade reflexiva. Por essa razão, a noção sartriana de consciência de si pré-reflexiva talvez seja uma condição mais apropriada da unidade da consciência, uma vez que a natureza do si é considerada, nesse modelo, como independente da reflexão ou sequer da sua possibilidade. É até mesmo possível ver o próprio corpo vivido na primeira pessoa como oferecendo a experiência de uma consciência que é ainda pré-reflexiva, pré-judicativa, como faz Merleau-Ponty (1945).
Por último, pode-se pôr em causa o próprio modelo da identidade pessoal. Por exemplo, para Nietzsche, a unidade da consciência é um sintoma e um signo de uma constelação de pulsões, na sua grande medida inconscientes, que constituíram o nosso si próprio. Este caracterizar-se-ia, por isso, pela pluralidade e não pela identidade ou pela unidade. Na verdade, o modelo de um si múltiplo, em que as partes se encontram em tensão recíproca, já é, de certa forma, indiciado na ideia da tripartição da alma, apresentada na República de Platão (Rep 435e e ss.) e é mais tarde desenvolvido não só por Nietzsche, mas também por Freud, através da partição do aparato psíquico em ego, super-ego e id (Freud 1940).
A crítica à concepção cartesiana de si próprio: o si próprio como vontade, cuidado e desejo
Na segunda secção e subsequentes, expusemos um modelo de compreensão do si próprio que assenta em dois pressupostos: que o si próprio é sujeito, isto é, consciência, ou melhor ainda, consciência de si, e que esta, por sua vez, tem uma natureza cognitiva. Ora, estes dois pressupostos podem ser postos em causa, fazendo com que outras compreensões do si próprio e da natureza da subjectividade possam advir daí.
Consoante já mencionado, é possível tomar a consciência, a parte que identificamos com o sujeito ou com o ego, o eu, como apenas uma pequena parte de um aparato mental mais vasto cuja natureza não consiste na consciência. É isto que Freud (1941) faz, por exemplo. Por outro lado, é possível, localizar o si próprio no corpo ou no organismo e considerar a consciência como um elemento secundário do nosso ser. Isto acontece, desde logo, numa tradição filosófica cujo começo pode ser localizado em Schopenhauer e toma a forma de suspeita relativamente ao modelo do sujeito racional e transparente para si próprio. O si próprio é o organismo entendido como vontade, isto é, como um ímpeto cego para a sua autoconservação que precede toda a consciência e racionalidade. Estas, por sua vez, bem como o sujeito como tal, são apenas uma “excrescência” do organismo e, tal como a cognição, são um instrumento ao serviço da “vontade” de sobrevivência e procriação. A subjectividade e a consciência teriam, assim, uma natureza ou vocação essencialmente prática.
Esta desconstrução da consciência continua com a filosofia de Nietzsche. Para Nietzsche, a consciência – ou, como o filósofo também a designa, a “pequena razão” (Za I, Dos desprezadores do corpo) – é apenas um sintoma e um signo de uma pluralidade de pulsões, em que cada uma quer ganhar domínio e submeter as outras ao seu jugo. Mais importante do que isso, apesar de cada uma destas pulsões constituir um determinado centro, um ponto de vista a partir do qual a realidade é perspectivada, não só estas pulsões são inconscientes como a sua “lógica” não é racional. Pelo contrário, a racionalidade e a consciência são já um determinado produto do conflito entre as diferentes “vontades de poder” das pulsões.
Por fim, Heidegger (2002) também critica a noção tradicional, cartesiana, de consciência e consciência de si, entendida como “substrato” de actos mentais. Apesar de renunciar à noção de consciência, o projecto de Ser e tempo pode ser lido como uma forma de apresentar uma versão radicalmente diferente do problema do si próprio. Heidegger não usa sequer o termo “sujeito”, mas sim Dasein para se referir ao tipo de ente que o “sujeito” é. Ao longo de Ser e tempo, o modo de ser do Dasein é caracterizado como “existência”, por contraposição aos entes que se encontram perante nós, mas também como ser-no-mundo, que no curso de Ser e tempo se revela mais propriamente como sendo cuidado (Sorge). Entre outras coisas, ser cuidado significa existir como um projecto de si mesmo, isto é, por mor da sua própria possibilidade.
Por outro lado, pôr em causa o carácter primordialmente cognitivo do sujeito não tem de implicar necessariamente uma crítica e desvalorização da consciência. Noutra linha, Fichte mostra que a consciência de si equivale à consciência da vontade; que esta tem, por isso, uma natureza essencialmente prática. Também em Sartre, a consciência de si não é cognitiva. Para Sartre, a consciência de si pré-reflexiva implica simultaneamente uma separação ou uma fissura no coração do si, que, por sua vez, gera uma tensão interior à própria consciência pré-reflexiva para o si se constituir como uma identidade – tensão que, segundo Sartre, permanece necessariamente frustrada, mas que está na raiz de todo o desejo humano.
O eu como agente, livre arbítrio e responsabilidade
O sujeito não tem de ser visto como tendo uma natureza cognitiva, podendo também ser considerado do ponto de vista da acção, isto é, do ponto de vista “prático”. Aliás, vários filósofos defenderam que a natureza do sujeito é essencialmente prática e não teórica.
Do ponto de vista prático, o sujeito não é apenas um centro que unifica “todas as minhas representações”, mas também o centro unificador de todas as minhas acções e aquilo que as torna precisamente “minhas”. Desta forma, ser um sujeito prático está intimamente associado ao sentimento de ser responsável pelas minhas acções. Falamos de um “sentimento” porque, na verdade, o seu estatuto é meramente fenomenológico; não há nenhuma garantia de que haja uma realidade que lhe corresponda. Não há nenhuma incompatibilidade a priori entre sentirmo-nos responsáveis pelas nossas acções quando agimos e a nossa acção ser totalmente determinada por causas que nos são alheias. No entanto, ser um sujeito em sentido prático, como pólo último que está na raiz de todas as minhas acções, também está associado ao que se convencionou chamar a liberdade da vontade ou livre-arbítrio, isto é, a capacidade de escolher entre vários cursos de acção possíveis. O livre-arbítrio e a responsabilidade implicam também a noção de imputabilidade. Atribui-se ao sujeito a capacidade de iniciar acções e de ser responsável por elas, e assim ele cai também sob a alçada não só de juízos morais, mas também de responsabilidade jurídica.
Conceitos como os de responsabilidade, livre arbítrio e imputabilidade, no entanto, só fazem sentido dada uma determinada concepção de sujeito como caracterizado pela consciência de si, pela autotransparência e pela racionalidade. Por exemplo, a tese de que o agente pode seguir motivações inconscientes levanta problemas relativamente àqueles conceitos e ainda mais a tese radical de que o “eu” se pode reduzir a um corpo cuja actividade só pode ser considerada em termos “mecânicos”.
Outro problema clássico associado ao “sujeito prático”, por um lado, e aos temas da responsabilidade e do livre-arbítrio, por outro, é o problema de saber como é possível a chamada causalidade psico-física – isto é, o facto de representações mentais causarem determinados acontecimentos do domínio físico.
Autenticidade, autocriação e narrativa
O tema da relação entre o agente e a acção está, por sua vez, ligado a outro tema muito importante no quadro da reflexão sobre o “sujeito”, o da chamada “autenticidade”. A autenticidade é precisamente a relação entre o agir e o ser em virtude da qual o primeiro exprime plenamente o último (o meu “si próprio”). Ser autêntico significa, em última análise, ser-se si próprio. A autenticidade tem mesmo, em alguns autores, o estatuto de um “ideal ético”.
A ideia de autenticidade tem o seu quê de paradoxal uma vez que implica que o si próprio pode ser ou não si próprio. Na medida em que o sujeito é um ser que, de certa forma, se autodetermina, que “faz” ou “realiza” o seu próprio ser, pode-se sempre questionar se ele realiza a sua verdadeira “essência” ou não. Esta ideia já está implicada na problemática antiga, que se pode encontrar, por exemplo, em Platão e Aristóteles, de encontrar a actividade que seria “própria” do ser humano e cuja realização o tornaria “excelente”. Por outro lado, numa abordagem existencialista ao tema da autenticidade, caso se tome, tal como Sartre, o sujeito como um “nada” ou como não tendo essência, a “inautenticidade”, que Sartre designa como “má-fé”, consistiria em o sujeito se tomar como existindo ao modo de uma coisa. Já para Heidegger, antes de Sartre, o modo de ser do “ser humano”, que ele designa como Dasein, distingue-se radicalmente do modo de ser das outras coisas, na medida em que o primeiro se define por ser a sua possibilidade. No entanto, segundo Heidegger, apenas a possibilidade da minha morte é propriamente minha e é na sua antecipação que a minha existência se torna autêntica. De outro modo, estarei alheado de mim e absorvido em possibilidades mundanas.
Uma variante deste ideal da autenticidade é o da “auto-criação”, introduzido por Nietzsche. A ideia de “auto-criação” parece inevitável a partir do momento em que se abandona uma concepção substancialista do si próprio. Se o “si próprio” não é nada, se o “si próprio” tem de ser construído, então o si próprio tem de se “criar a si mesmo”, ou seja, tem de dar uma forma, uma unidade coerente ao “caos” dos instintos, dos impulsos, etc.
Ainda neste quadro, outra concepção muito em voga é a de si próprio como narrativa (Ricoeur 1990). Nesta concepção, o si próprio consistiria na narrativa que construímos acerca de nós próprios ou na nossa história de vida. Por essa razão, os animais não seriam propriamente “si próprios” por não possuírem uma identidade narrativa. A concepção do si próprio como narrativa também pode aparecer associada a um certo “ficcionalismo”, na medida em que todas as narrativas, mesmo quando baseadas em factos, têm normalmente um cariz subjectivo, interpretativo e revisível, e os mesmos “factos” são ambíguos, isto é, podem ser “contados” de tantas maneiras diferentes quantas as pessoas que os narram. Esta circunstância mostra bem que, ainda que possa jogar algum papel na identificação de um determinado si, dificilmente a narrativa pode ser o único e mais básico critério de identificação de quem se é.
A dimensão social da subjectividade
Um outro aspecto da noção de “si próprio” é o que diz respeito à dimensão social da noção de sujeito. Até agora falámos do “sujeito” como se a natureza deste fosse completamente independente do facto de haver outros sujeitos e de estes desempenharem um papel muito importante na constituição da nossa própria identidade. Há também uma razão profunda para isso na história da filosofia. Como a filosofia medieval cristã, na esteira do platonismo, concebia o essencial do ser humano, o seu si próprio, como residindo na alma racional, separada do corpo, o seu carácter social foi também deixado em segundo plano. Esta tendência acentuou-se ainda mais na filosofia moderna pós-cartesiana, dada a sua ênfase na consciência de si como cerne da subjectividade e da ipseidade. Ora, neste aspecto, pensadores como Hegel (com um antecedente importante em Fichte) foram bastante importantes por introduzirem, na discussão filosófica, a problemática daquilo que se veio a chamar a intersubjectividade. A intersubjectividade diz precisamente respeito à problemática da relação entre diferentes sujeitos. Defender que a intersubjectividade é essencial à subjectividade é o mesmo que defender que a minha identidade depende, de algum modo, da identidade dos outros. Por exemplo, Hegel põe em evidência que a consciência de si como tal implica a consciência do outro sob a forma do reconhecimento mútuo. Também na fenomenologia, a problemática da intersubjectividade conheceu desenvolvimentos teóricos consideráveis. Sartre, Merleau-Ponty e em certa medida até Husserl defendem, ainda que de formas diferentes, o carácter intrinsecamente social da subjectividade. Também Heidegger pensa que o si próprio não é, à partida e a maior partes das vezes, si próprio, antes é inautêntico, por as suas possibilidades em que vive serem “anónimas” ou serem as possibilidades de “toda a gente e ninguém” (i.e., do que ele chama o si próprio impessoal – das Man-selbst). Noutra linha, filósofos como Nietzsche ou o segundo Wittgenstein, por exemplo, defendem que a noção de “eu” tem como condição de possibilidade a aquisição da linguagem e as suas estruturas e defendem, por essa via, também o carácter intrinsecamente social do “si próprio”.
O sujeito como ilusão?
Por fim, alguns filósofos ocidentais defenderam também que o sujeito ou o “eu” é uma ilusão. Esta ideia encontra ecos e raízes no budismo, onde a ideia do carácter ilusório do sujeito aparece associada também a ideias de carácter moral. A crença na existência do sujeito seria, de acordo com esta concepção, fonte de sofrimento. No entanto, apesar de a ideia de que o sujeito é uma ilusão ser recorrente na história da filosofia ocidental, está longe de constituir uma linha consistente, sendo os motivos pelos quais foi defendida bastante diversos. Como vimos, entre os modernos, David Hume assumiu uma posição céptica relativamente ao sujeito. Hume não rejeita categoricamente a noção, antes admite que não encontra nenhuma justificação teórica para ela. Denotando já influências do pensamento oriental, Schopenhauer pode também ser lido como defendendo o carácter ilusório do sujeito, embora no seu caso isso tanto possa significar uma negação de que haja um si próprio individual como, numa versão mais moderada, o carácter secundário da subjectividade entendida como consciência, em comparação com o nosso “verdadeiro” si próprio (posição em que é seguido por Nietzsche e Freud).
Mais recentemente, filósofos como Dennett (1991) e Metzinger (2003) defendem o carácter ficcional da consciência e do “eu”. Em parte, esta rejeição deriva de se conceder primazia à ciência na determinação do que existe ou não. Como segundo alguns destes filósofos, o “eu” é dispensável no discurso científico, não tem também nenhuma função ou sentido e pode ser descartado.[4]
[1] Nietzsche, no entanto, critica veementemente esta crença nas “evidências imediatas”, sobretudo a que diz respeito ao “eu” (BM 16).
[2] O olho vê-se a si mesmo no espelho, mas aí não se vê na sua função de olho, precisamente como aquilo que vê, mas apenas uma imagem de si mesmo, isto é, como um objecto.
[3] Sobre diferentes tipos de critério de identidade pessoal, v. Shoemaker (2013).
[4] Agradeço ao Hélder Telo a preciosa revisão e comentário científico a versões anteriores deste texto.
Bibliografia
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(Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da Norma Transitória – DL 57/2016/CP1453/CT0035.)
Outros artigos
Consciência moral; Intersubjectividade.
Como citar este artigo
Sousa, L. A. de “Sujeito”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2020), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/sujeito>
DOI: https://doi.org/10.34619/7nyy-5q47
Publicado em: 8 de Maio de 2020
FCSH, Universidade Nova de Lisboa
<lfsousa@fcsh.unl.pt>