Vontade de Poder
A vontade de poder (Wille zur Macht) é uma das noções nietzschianas mais conhecidas, discutidas – e, muito provavelmente, mal-entendidas. Embora não seja particularmente desenvolvida nas obras publicadas (pelo contrário, esse conceito está bastante presente no espólio, razão pela qual Martin Heidegger, cuja interpretação de Nietzsche se baseia na ideia de que a vontade de poder é o conceito filosófico fundamental do seu pensamento, considerou particularmente relevante o conteúdo dos fragmentos póstumos), as referências a esse assunto são muito bem escolhidas por Nietzsche e, consoante será mostrado, determinam um percurso temático conducente a um ideal antropológico aristocrático que nada tem que ver com a imagem do super-homem (Übermensch) presente nas piores leituras de Nietzsche.
Como é bem conhecido, esta figura é apresentada em Assim falava Zaratustra como o tipo humano capaz de aproveitar a mesma vontade de poder. Infelizmente, na época da primeira receção do pensamento nietzschiano, o ideal do super-homem foi imediatamente interpretado num sentido afirmador e dominador (com óbvias consequências éticas e políticas) devido parcialmente à escolha lexical de Nietzsche, pois “vontade de poder” é uma locução que pode ser facilmente mal-entendida – particularmente pelos alemães do Reich, como o mesmo Nietzsche admitiu (#eKGWB/NF-1887,9[188]; Müller-Lauter 1999: 18). Portanto, uma boa interpretação do conceito nietzschiano tem de tomar em conta o sentido próprio das palavras que Nietzsche utiliza, assim como o contexto dentro do qual esse conceito aparece. Como já o Zaratustra antecipa implicitamente (#eKGWB/Za-I-Ziel; #eKGWB/Za-II-Ueberwindung), o contexto é o do projeto filosófico e editorial da Reavaliação de todos os valores elaborado durante a fase madura do pensamento de Nietzsche (1885-1888) e com o qual a noção de vontade de poder é geneticamente relacionada (Montinari 1982). No que diz respeito ao sentido dos termos “vontade” e “poder” e à riqueza do conceito filosófico nietzschiano no seu conjunto, a sua compreensão diz respeito a três âmbitos conceptuais interligados.
Vontade, poder e potência
O conceito nietzschiano de vontade de poder é construído a partir do schopenhaueriano “vontade de vida”. Isto é bem esclarecido pelo próprio Nietzsche, sendo que o seu objetivo consiste precisamente em desenvolver uma noção alternativa à de Schopenhauer, isto é, que individue um ideal filosófico contrário ao pessimismo niilista que, segundo Nietzsche, carateriza o pensamento do seu “educador” ideal (Constâncio 2013, parte 1 e 2). Em Assim falava Zaratustra, por exemplo, Nietzsche contrapõe explicitamente a sua noção de vontade de poder à de vontade de vida, observando que o novo conceito é mais apto a manifestar o caráter próprio da vida, isto é, a sua tendência a “superar-se a si própria” (#eKGWB/Za-II-Ueberwindung). Como Nietzsche escreve uns anos mais tarde, no livro V da Gaia ciência (redigido em 1886 mas publicado no ano seguinte, na segunda edição da obra), o “querer viver é precisamente ‘vontade de poder’”, ou seja uma tendência à expansão, desenvolvimento, transformação e auto-superação (#eKGWB/FW-349). O mesmo aliás é dito de maneira muito similar em Além do bem e do mal (#eKGWB/JGB-13; #eKGWB/JGB-259).
Esta ideia é desenvolvida por Nietzsche a partir de algumas considerações de caráter ontológico sobre o conceito de vontade, quer dizer, observações que dizem respeito ao valor dessa noção e à possibilidade que essa individue algo real. É particularmente contra a interpretação metafísica da vontade – isto é, contra a concepção da vontade como faculdade autónoma que carateriza a ação livre dos homens – que Nietzsche reflete no seu espólio. Os fragmentos póstumos contêm bastantes observações sobre o facto de a “vontade” que aparece na fórmula “vontade de poder” não ser uma vontade no sentido tradicional desta palavra, pois o conceito nietzschiano diz respeito a uma atividade muito mais básica do que à da ação consciente humana. Com essa palavra, Nietzsche tenta traduzir o princípio fundamental da realidade natural num idioma compreensível pelos homens e aplicável ao âmbito da psicologia e da antropologia (Staten 2006: 567; Golomb 2013: 529). Como a ciência natural ensinava na época de Nietzsche, a realidade natural é constituída por um conjunto de forças (Kräfte) em relação contínua e caótica, e não há fundamento ontológico do mundo fora desta mesma relação (Abel 1998). Segundo este modelo (que se encontra por exemplo em um fragmento do ano 1885 no qual Nietzsche afirma que o mundo concebido como “monstruosidade de força, sem princípio e sem fim, […] é a vontade de potência — e nada além disso!”, #eKGWB/NF-1885,38[12]), a relação entre as forças naturais é uma atividade incessante, sem direção ou finalidade nenhuma; mas sobretudo é uma atividade necessária – isto é, não normativa e não intencional, como Nietzsche observa por exemplo em Além do bem e do mal (#eKGWB/JGB-22). Este aspeto é extremamente importante para perceber de maneira correta qual o tipo de atividade a que Nietzsche se refere quando fala de “vontade de poder”, pois por um lado a pressuposta voluntariedade desaparece e, por outro lado, também o conceito de “poder” muda de sentido, enquanto “designa a influência de uma força sobre outra força […] num quadro de afeção e resistência recíproca” (Constâncio 2013: 135). Portanto, “segundo Nietzsche, ‘poder’ não significa o mesmo que coerção” (Constâncio 2013: 134) e o termo deveria ser traduzido pela palavra “potência” (conforme ao caso de outros idiomas, como por exemplo o italiano “volontà di potenza” ou o francês “volonté de pouissance”).
“Vontade de poder” tem de ser entendido em primeiro lugar como um princípio dinâmico fundamental, quer dizer, como tendência ao desenvolvimento, à expansão e articulação que nunca pode parar e que se encontra no mundo natural no seu complexo (quer no âmbito orgânico quer no âmbito inorgânico). Se aplicado à vida, esse conceito contrasta directamente com a imagem potencialmente anti-dinâmica do mundo orgânico que Nietzsche atribui (porventura erroneamente) a Spinoza e Schopenhauer: “Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de autoconservação como o impulso cardinal de um ser orgânico. Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder –: a autoconservação é apenas uma das indiretas, mais frequentes consequências disso” (#eKGWB/JGB-13).
Além disso, a leitura da vontade de poder a partir dos seus princípios ontológicos permite refletir sobre o tipo de “unidade” que carateriza o conceito de vontade, em Nietzsche. Também em este caso, Nietzsche rejeita a interpretação tradicional e observa que o fenómeno da vontade só aparentemente tem um fundamento unitário, pois é, de facto, o resultado de cooperação e organização entre estruturas complexas, como por exemplo no caso do organismo (Müller-Lauter 1999, cap. 9). A concepção da vontade de poder como agregação de forças que determina núcleos inconsistentes (imateriais) e impermanentes (#eKGWB/NF-1888,14[82], onde Nietzsche chama esses unidades Willens-Quanta) comporta que o elemento fundamental é a relação entre os poderes em jogo e não a unidade ideal que resulta ser um produto secundário da atividade dinâmica. Pois, como observa Müller-Lauter (1999: 130-1 e 141), no modelo que Nietzsche descreve há uma multiplicidade de vontades de poder, conforme a multiplicidade de forças em relação recíproca que constituem o fundamento da realidade. Portanto, a imagem tradicional (schopenhaueriana) de uma vontade como entidade simples (#eKGWB/FW-127) ou como faculdade produtora de efeitos (#eKGWB/GD-Irrthuemer-5) tem de ser rejeitada e substituída por uma complexidade que é unitária apenas de um ponto de vista funcional (#eKGWB/JGB-19; Müller-Lauter 1999: 15-16). Isto é, Nietzsche abandona a ideia de que existe um fundamento substancial da atividade natural; não há um átomo, um sujeito ou alma, etc., que seja causa da dinâmica que, pelo contrário, o constitui (#eKGWB/JGB-16 e 17; #eKGWB/GM-I-13). Assim, nas suas próprias palavras, na vontade de poder “cada unidade só é unidade enquanto organização e cooperação, o contrário de uma anarquia atomística; [é] uma estrutura de domínio que significa unidade mas que não é uma unidade” (#eKGWB/NF-1885,2[87]).
Relacionismo e Rangordnung
O quadro descrito até aqui tem consequências significativas no âmbito ético e político, em primeiro lugar porque a natureza da dinâmica do poder é essencialmente relacional; isto é, trata-se sempre e só de “uma questão de maior ou menor poder em relação a outro poder” (Constâncio 2013: 133; Ottmann 1999: 352-8). Como observa Nietzsche, cada “vontade de poder só pode manifestar-se contra resistências” (#eKGWB/NF-1887,9[151]) e não se dá fora de uma rede de relações em que cada elemento é igualmente essencial – uma rede cuja estrutura muda constantemente conforme a atividade de ação e reação recíproca entre as forças, que carateriza o desenvolvimento natural. Isto significa que o modelo nietzscheano não diz respeito a um domínio unilateral finalizado à eliminação das oposições – quer dizer, um poder absoluto é impossível por definição. Pelo contrário, a vontade de poder precisa que o confronto, o antagonismo sejam mantidos e que a alternância entre poder temporariamente “dominador” e poder temporariamente “servidor” se desenvolva continuamente.
O tema ético consequente é portanto o do relativismo: uma concepção que não admite nenhum princípio como essencialmente superior aos outros, mas sim sugere que os valores sejam mensurados a partir da sua função momentânea e do contexto da mesma avaliação. Vale a pena notar que, no caso de Nietzsche, este relativismo não tem um sentido negativo, ou seja, não conduz a uma forma de ceticismo ou niilismo axiológico. A vontade de poder assume um papel fundamental no projeto de reavaliação dos valores porque prevê uma intervenção ativa e criadora sobre as velhas tábulas de valores, e isto é possível dado que o quadro anti-essencialista da ontologia das vontades do poder não deixa o observador sem princípios de orientação. De facto, embora “as relações de poder” sejam “relações dinâmicas, mutáveis, fluidas, insubstanciais, são também relações de ‘comando e obediência’” (Constâncio 2013: 142). Portanto, no fundo da rede de relação entre Willens-Quanta encontra-se sempre uma hierarquia (Rangordnung) de ações e reações, ou de “graus de poder” (Grade der Macht), que é possível assumir como princípio de avaliação. Assim escreve Nietzsche num importante fragmento de 1887: “Não há nada na vida que tenha valor, a não ser o grau de poder – a supor justamente que a própria vida seja vontade de poder. A moral protegia os malogrados do niilismo, conferindo a cada um deles um valor infinito, um valor metafísico, e inserindo-o numa ordem que não está de acordo com aquela do poder e da hierarquia [Rangordnung]mundanos” (#eKGWB/NF-1886,5[71]).
Resumindo: do pondo de vista ético e político, a vontade de poder não justifica o tipo de moral afirmadora que tradicionalmente se atribui ao pensamento nietzscheano. Ser criadores de valores não significa impor as suas avaliações sobre as outras sem tomar em conta as perspectivas alternativas, igualmente viáveis e apenas em contraposição com as quais o nosso ponto de vista ganha sentido. Segundo Nietzsche, o processo avaliativo é um jogo dinâmico no qual o momento negador (a crítica do valor absoluto das avaliações tradicionais) contém também um princípio afirmador (os valores não são eliminados, mas sim reavaliados como produtos de uma história contínua). Por isto, o “martelo” com o qual Nietzsche se arma na sua guerra contra a tradição filosófica (#eKGWB/GD-Vorwort) é uma ferramenta que não pretende destruir o edifício cultural, mas apenas mostrar a aleatoriedade dos seus fundamentos e a necessidade de os reconstruir com base em princípios supostamente mais adequados.
Antropologia e cultura aristocrática
Um último passo tem de ser dado para completar esta incursão em torno do conceito de vontade de poder, um que relacione a vontade de poder com o ideal cultural e antropológico do Nietzsche tardio. A vontade de poder não diz respeito apenas às forças (isto é, à dinâmica natural), mas também à articulação interna do organismo, quer dizer, ao conjunto de afetos, paixões, pulsões e instintos que ocorrem ao nível pré-consciente da atividade humana. Pois a vontade de poder é, segundo Nietzsche, a “forma primitiva de afeto” (#eKGWB/NF-1888,14[121]) e, portanto, o princípio fundamental de qualquer investigação fisio-psicológica. Esta ideia é desenvolvida particularmente em Além do bem e mal 23, onde Nietzsche sugere a possibilidade de reavaliar a psicologia e “compreendê-la como teoria e morfologia da vontade de poder” (#eKGWB/JGB-23), e em Além do bem e mal 36, um aforisma que corresponde ao fragmento póstumo do ano 1885 que diz respeito à imagem do mundo como conjunto de forças em contínuo desenvolvimento. Em Além do bem e do mal (cuja preparação começou em 1885), Nietzsche formula a hipótese de que toda a vida instintiva possa ser interpretada a partir do conceito de vontade de poder:
Pressupondo que nada é “dado” como real senão o nosso mundo dos desejos e das paixões, que não podemos alcançar, nem para baixo nem para cima, outra “realidade” que não seja precisamente a das nossas pulsões, […] não será permitido fazer a tentativa de levantar a questão de saber se este dado nos basta para compreendermos, a partir daquilo que lhe é igual, também o assim chamado mundo mecânico (ou “material”)? […]
Pressupondo, por fim, que conseguíssemos esclarecer toda a nossa vida pulsional como formação e ramificação de uma forma fundamental de vontade – nomeadamente a vontade de poder, como eu proponho –; pressupondo que se podiam reconduzir todas as funções orgânicas a esta vontade de poder e encontrar nela a solução para o problema da geração e nutrição – o que é um problema –, ter-se-ia, com isso, adquirido o direito de determinar univocamente todas as formas de força efetiva como: vontade de poder. O mundo visto de dentro, o mundo designado e determinado no seu “carácter inteligível”, – seria precisamente “vontade de poder” e nada além disso. (#eKGWB/JGB-36)
É esta multidão de paixões e instintos que constitui a realidade complexa que se encontra na base do conceito unitário de “vontade” do sentido comum e da qual a vontade de poder é princípio unificador e coordenador (Müller-Lauter 1999: 17). À luz desta interpretação do organismo como totalidade constituída por uma hierarquia de pulsões organizada, o conceito nietzscheano ganha sentido, particularmente no que diz respeito à noção de “poder”. Como observa Constâncio, com referência à interpretação de John Richardson (1996: 21-28), segundo Nietzsche o “poder” de uma pulsão “não denota um fim, um objectivo ou um alvo […] e não pode ser confundido com o ‘poder’ como é pensado em expressões como ‘poder terreno’ ou ‘poder político’. A vontade de poder pretende explicar não o ‘porquê’ […] mas o ‘como’. […Isto é,] a vontade de poder é a ‘lógica’ interna da actividade das pulsões, a forma como eles se comportam, e dizer que ‘a vida é vontade de poder’ é dizer que as pulsões (ou todas as ‘funções orgânicas’ que tornam possível a nossa actividade psicológica, os nosso desejos, paixões e pensamentos) têm uma dinâmica endógena que as move […] a mais poder e, portanto, a uma permanente ‘auto-superação’” (Constâncio 2013: 131).
Os dois elementos de organização e auto-superação assumem um papel fundamental na interpretação da vontade de poder nietzscheana, porque caraterizam o tipo humano superior (ideal) que Nietzsche imagina em contraposição ao modelo antropológico produzido pela moralidade europeia cristã (#eKGWB/GM-Vorrede-6). A investigação psico-antropológica que Nietzsche desenvolve na fase madura do seu pensamento evidencia a fraqueza dos europeus da sua época, que Nietzsche descreve através dos conceitos de ressentiment e décadence. Caraterística destes tipos humanos é particularmente a incapacidade de gerir o complexo conjunto de instintos sub-conscientes, isto é, de encontrar um equilíbrio psíquico e fisiológico que permita um ulterior desenvolvimento espiritual. O ressentimento, por exemplo, é definido por Nietzsche como uma falta de poder que implica um sentimento de impotência (Reginster 2013: 708). Em contraposição a esses tipos humanos fisiologicamente fracos, Nietzsche imagina portanto um modelo alternativo caraterizado pela capacidade de dominar as suas pulsões e os seus instintos. Este homem superior, este “espírito livre” (#eKGWB/MA-I-Vorrede-3; #eKGWB/JGB-44 e 211) é livre num sentido que não diz respeito ao conceito tradicional de vontade livre. Pois, conforme a reavaliação nietzscheana do conceito de vontade, a liberdade da futura humanidade tem de ser definida a partir do conceito de vontade de poder como potência organizadora e reguladora. Portanto, o tipo humano ideal – o “mais forte”, o mais potente, o “mais rico de saúde”, o homem capaz de afirmar a vida e de não ser sujeito à anarquia dos seus instintos – é “o mais comedido” (#eKGWB/NF-1886,5[71]) e não o dominador absoluto que a tradição indicou, deslumbrada pela figura do Übermensch, também mal-entendida. Se quiséssemos atribuir um nome a este tipo humano, talvez o melhor fosse “indivíduo soberano”, uma figura que se encontra por exemplo na Genealogia da moral (#eKGWB/GM-II-2) e que pode ser considerada como o caráter oposto ao homem do ressentiment e ao décadent, enquanto individuo capaz de controlar os seus instintos e pulsões e utilizar a sua vontade de poder como princípio de atividade produtivamente eficaz (Reginster 2013: 717).
Além disso, o ideal antropológico que o Nietzsche tardio elabora a partir da noção de vontade de poder inclui uma caraterização do conceito de nobreza e aristocracia que Nietzsche contrapõe ao modelo democrático das instituições liberais da sua época. Também neste caso o motivo antidemocrático da vontade de poder tem de ser explicado à luz das considerações desenvolvidas até aqui, pois a crítica que Nietzsche faz à política democrática incide sobre a necessidade de manter a história em movimento. Quer dizer, a preocupação de Nietzsche é que as instituições liberais promovam um modelo igualitário que elimina a diferença de grau ou “pathos der Distanz” (#eKGWB/JGB-257; #eKGWB/GM-I-2; #eKGWB/GD-Streifzuege-37) entre os indivíduos e, consequentemente, o fundamento conflitual do processo de desenvolvimento cultural. Do ponto de vista antropológico, o movimento democrático é “uma forma de decadência ou diminuição do homem, sua mediocrização e rebaixamento de valor […] até tornar-se o perfeito animal de rebanho”, isto é, o europeu cristão (#eKGWB/JGB-203). O modelo gregário é evidentemente o ideal oposto ao espírito livre, que Nietzsche descreve como espírito guerreiro ou indivíduo nobre capaz de dominar a sua vida, “ter a vontade da responsabilidade pessoal” e “manter com firmeza a distância que nos separa” (#eKGWB/GD-Streifzuege-38) – todos elementos que jogam em favor de uma constante renovação e desenvolvimento ético mas também político.
Conforme ao conceito de liberdade construído a partir do princípio da vontade de poder (entendido corretamente), é possível afirmar que Nietzsche atribui a este tipo humano caraterísticas bastantes diferentes daquele tipo de tirania egoísta que comummente se encontra associado ao pensamento nietzscheano. Pelo contrário, a capacidade dos espíritos livres de desenvolver uma “sublimação criadora dos instintos” comporta que estes indivíduos “manifestam uma tolerância intelectual e uma integridade existencial” (Golomb 2013: 539) afirmando a sua autoridade apenas através do exemplo positivo (e não impositivo) constituído pela sua capacidade de ser criadores de novos valores.
Este último elemento é de facto o mais relevante pela interpretação do conceito de vontade de poder. Consoante observado anteriormente, este conceito é desenvolvido no contexto da reavaliação de todos os valores, uma tarefa que diz respeito à capacidade de se afastar das tábulas de valores tradicionais e desenvolver um novo tipo de atividade ética e prática. Segundo Nietzsche, a vontade de poder determina um novo modelo moral e antropológico: uma “moral saudável” que promova a vida (#eKGWB/GD-Moral-4 e 5) e um correspondente tipo humano, mais equilibrado e, por isso, mais forte e rico de saúde. Portanto, a vontade de poder assim interpretada torna-se princípio de elevação do ser humano e, mais em geral, de renovação cultural (Constâncio 2013: 138) num sentido antidemocrático que tem de ser avaliado com as cautelas próprias exigidas pela complexidade inerente a este conceito nietzschiano.
Bibliografia
Os textos de Nietzsche são citados segundo a Digitale kritische Gesaumtausgabe, isto é, a versão digital da edição crítica alemã das obras completas de Nietzsche editadas por G. Colli e M. Montinari, disponível em linha (http://www.nietzschesource.org/). Cada referência indica a obra, a parte e a secção da obra – ou, no que diz respeito ao espólio, o ano do fragmento póstumo e o número que o identifica. Por exemplo, #eKGWB/GM-I-1 indica: Genealogia da moral, primeira dissertação, primeira secção. Esta referência é a parte final do url: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/GM-I-1. Conforme a este modelo, para localizar cada passagem citada, é suficiente acrescentar a referência à primeira parte do url. As traduções portuguesas utilizadas são indicadas na bibliografia que segue.
Abel, G. (1998), Nietzsche. Die Dynamik der Willen zur Macht und die ewige Wiederkehr, Walter de Gruyter, Berlin/New York.
Constâncio, J. (2013), Arte e niilismo. Nietzsche e o enigma do mundo, Tinta da China, Lisboa.
Gerhardt, V. (1996), Vom Willen zur Macht. Anthropologie und Metaphysik der Macht am exemplarischen Fall Friedrich Nietzsches, Walter De Gruyter, Berlin/New York.
Golomb, J. (2013), “Will to Power: Does it Lead to the ‘Coldest of All Cold Monsters?’”, in K. Gemes e J. Richardson (eds.), The Oxford Handbook of Nietzsche, Oxford University Press, NewYork/Oxford, pp. 526-550.
Montinari, M. (1982), “Nietzsches Nachlaß von 1885 bis 1888 oder Textkritik und Wille zur Macht”, in M. Montinari, Nietzsche Lesen, Walter De Gruyter, Berlin/New York, pp. 92-119.
Müller-Lauter, W. (1971), Nietzsche. His Philosophy of Contradictions and the Contradictions of His Philosophy, trad. D. Parent, University of Illinois Press, Chicago (1999).
Nietzsche, F. (1883-1885), Assim falava Zaratustra, Lisboa, Guimarães (2015).
Nietzsche, F. (1886), Além do bem e do mal, São Paulo, Companhia das Letras (1992).
Nietzsche, F. (18872), A gaia ciência, Lisboa, Guimarães (2000).
Nietzsche, F. (1888), Crepúsculo dos ídolos, Lisboa, Edições 70 (1985).
Ottmann, H. (1999), Philosophie und Politik bei Nietzsche, Walter De Gruyter, Berlin/New York.
Reginster, B. (2013), “The Psychology of Christian Morality: Will to Power as Will to Nothingness”, in K. Gemes e J. Richardson (eds.), The Oxford Handbook of Nietzsche, Oxford University Press, Oxford, pp. 701-726.
Richardson, J. (1996), Nietzsche’s System, Oxford University Press, Oxford.
Staten, H. (2006), “A Critique of the Will to Power”, in K. Ansell Pearson (ed.), A Companion to Nietzsche, Blackwell, Malden/Oxford/Carlton, pp. 565-582.
Outros artigos
Poder; Übermensch
Como citar este artigo
Gori, P. “Vontade de Poder”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2019), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/vontade-de-poder>.
DOI: http://doi.org/10.34619/87yn-zf67
Publicado em: 6 de Julho de 2019
FCSH, Universidade Nova de Lisboa
<pgori@fcsh.unl.pt>